quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Patos, traçado migratório e velhice.

Patos, traçado migratório e velhice.


Todas elas falavam ao mesmo tempo feito um bando de patos perdidos após errar o caminho migratório. Ao que posso perceber, e já me havia sido dito previamente, era apenas um grupo de adolescentes que já se conheciam há alguns anos ( ainda se assemelha a um grupo de patos barulhentos), motivo pelo qual era dado o direito de tecerem conversas a fim de colocar suas vidas em dia e sincronismo.

Estávamos todos em uma lanchonete, ou café, dessas de cidades interioranas. Frente à praça, onde transeuntes de olhos apagados puxam suas crias que por sua vez apertam os passos para acompanhá-los, uma bela igreja de estilo indefinido em seu silêncio póstumo esperando seus devotos das 6 horas, e aquele grupo de garotas falastronas.

Lembro-me de olhar ao redor tentando identificar uma figura que me concedesse imagem e semelhança ou apenas um outro cidadão ávido por nicotina, o qual tomado de uma coragem maior que a minha, já pousasse na mesa um cigarro que daria carta branca a todos os seus seguidores para que despejassem sua porcentagem de fumaça sobre a cabeça dos clientes. Mas é cedo, são apenas elas. Acendo o primeiro cigarro e sinto olhares reprovadores, um dos quais de Adriana.

Adriana era minha companheira, e por conta dela estávamos em devida situação. Agia como a fêmea alfa do bando. De volta à cidade pequena, após uma estadia longa na capital, trazia roupas novas, um sotaque mais polido, experiências sexuais alternativas e um namorado fumante (como também um bocado de egocentrismo e alusões), o que era o suficiente para ser automaticamente proclamada a representante oficial da precariedade de aspiração e estagnação psicológica da nova safra de adolescentes dessa geração. E com louvor! Ao menos era como eu a via, mesmo nunca lhe tendo confessado.

- Você vai fumar aqui?

- Vou. É bem ventilado, e não há placas para...

- Elas podem não gostar.

Elas. Elas deviam estar ao norte, agora. Acasalando com machos que brigariam, por horas, para decidir de quem seria a linhagem de sucessores que se tornariam futuros lidere como você.

- Ah, tudo bem, Adriana. Pode Deixar. Só, por favor, pede para ele deixar a mão mais perto da janela para a fumaça ir embora.

Sorrio.

Não saberia dizer o que me passou exatamente pela cabeça diante de tal permissão. Talvez a gratidão de um cão presenteado com uma coleira de corrente mais longa, ou a indignação de um meio castrado que haveria de sustentar toda sua divida com a existência em cima de apenas um testículo. Pior, poderiam estar me dando o alvará, ainda que condicional, de me juntar ao bando. Olho para a rua imediatamente e sinto a mão de Adriana encontrar a minha e apertar-me os dedos, com o carinho de quem se orgulha da própria escolha que acaba de ser aprovada pelos restantes. Continuo olhando fixamente para a rua. Desejo uma espingarda e um labrador.

Pacata. “3 horas da tarde é um ótimo período para um passeio familiar pela praça” constato. Dois garotos brincando de ameaçar pombos. Velhos contra-atacam alimentando os pombos. Jovens casais encontram abrigo sob a sombra de grandes mangueiras para prometerem hoje o que quebrarão amanhã. A calmaria dos carros que respondem ao dia aberto com lampejos de Sol em seus pára-choques. Casas pequenas de portas esguias e altas suspiram café forte nos transeuntes. O vento quente que me acertava em cheio o rosto e fazia a fumaça de meu cigarro dançar flamenco sobre a mesa da lanchonete.

- Ei, a fumaça!- Sinto apertar meus dedos..

Sorrio condolentemente e torno a desviar minha atenção para a praça. Por um momento pude construir toda uma velhice por aquelas ruas. Pude imaginar um passeio ao fim da tarde para esticar as pernas e lembrar ao sistema circulatório de que faça seu trabalho. A busca pelo pão de cada dia e do troco certo para o jornal. Pude imaginar o compromisso de alimentar os pombos. O cigarro... Não. O cachimbo, ao fim da noite, onde sozinho, concluiria o débito diário de uma vida agitada. Totalmente só.

- Ah, a fumaça de novo!- Sinto a mão dela sobre a minha.

Seria maravilhoso.

domingo, 5 de outubro de 2008

Vale da Sombra da Morte

Vale da Sombra da Morte


Quando dei por mim lembrei de tantas reportagens e noticias sobre tragédias noturnas que escorriam por entre aquelas esquinas e ruas centrais. Não que a real condição de existência de tais fatos nunca tivessem me ocupado alguns minutos de reflexão, mas a habilidade de se manter alheio a tais possibilidades diante de ti é inegável. Pura hipnose inconsciente para conservação da sanidade, imagino.

Pois bem, enfim me deparei com a real possibilidade de, finalmente, ser caça.

Não que tivesse medo, acredito não ser a palavra correta, mas a cada passo cantado pela calçada, a noite aumentava seu silêncio. A cada esquina duas emboscadas em potencial, janelas trincadas eram cúmplices.

Meu espírito era grande, meus passos firmes e rápidos, mas sou animal e sempre existe um igual mais forte.

Um par de caninos famintos.

Lembro-me de não ter conhecido algum que tivesse passado por tal situação. São sempre desconhecidos, sempre rostos desprovidos de lembranças... No máximo uma semelhança física, puramente coincidente, com algum primo distante. Porem, qual seria a amplitude de minha existência ou meu grau de semelhança com parentes distantes de toda essa gama de outros alheios? Maldito seja o bom senso!

O ar esfria e eu aumento o ritmo.

Aqui devo me desmentir. Medo? Sim! Não há palavra melhor ou contexto mais adequado para a utilização de tal termo. Eu sentia medo, medo profundo. A cada instante da sensação de liberdade noturna eu criava mil visões de minha própria captura, diversos tons de grito. Tremia a cada golpe de possibilidade.

Acelerei o ritmo.

Bendita seja tua toca, criatura!

Quando Deus tem insônia, caminho pelo Vale da Sombra da Morte.

Para o fim de toda a esperança.

Para o fim de toda esperança


Fica mais simples quando você

percebe a falta de caminho no fim da tarde

e os insetos se esgueiram em volta de seus

pés.

Não há asas de albatroz

que te levem ao lado desconhecido do

mundo.

Nem quartos, enfeitados

de belas pessoas e uma festa

ao fim dos tempos

Fica mais simples quando

Você

corta fora as sobras de sua

vida

com um grande alicate de

jardinagem enferrujado

E tudo que adoecer

e apodrecer

Será bem vindo.

Trilha Transpassada

Trilha Transpassada

Os cascalhos estalaram enquanto o pneu fino da bicicleta girava por sobre o terreno recortado. O Sol batia forte entre as copas das arvores e pintava a paisagem feito um quadro de Van Gogh.

Em um milésimo de segundo o vento atinge meu rosto com suavidade característica. Lembro-me de uma viagem há anos atrás, e percebo a semelhança dos locais, talvez até mesmo uma cópia guardada no fundo da memória.Respiro nostalgia e me alimento daquele prazer especifico o qual atribuímos somente à memória.

Acelerei as pedaladas a fim de poder inspirar o maior volume de ar possível, enchendo os pulmões com aquela fatia de felicidade passada.

Sorri, sorri e apenas pedalei.

Após uma íngreme descida, onde as árvores começavam a ficar mais distantes entre elas, deixando com que o sol predomine em maior parte no terreno, e ao fundo já se distinguissem pequenas casas e lagos azuis turquesa, me deparei com a figura de um homem sobre uma bicicleta antiga, que percorria seu trajeto sem pressa. E esse foi o momento em que rompi as barreiras da própria lembrança e me aventurei, entre pedaladas, aos sonhos alheios, o sonho daquele homem.

Corri, corri para ultrapassá-lo, para me localizar, como quem procura uma placa em meio à estrada.

O ultrapassei e com um breve olhar para trás distingui seu rosto, ou como deveria ser, me recordei das páginas de sua vida. Cumprimentamo-nos com um singelo aceno de cabeça pintado com sorriso.

Creio que eram as mesmas pedaladas, o mesmo sonho de resgatar o passado que fora atropelado por anos violentos. Épocas diferentes, mas com o mesmo propósito. Era um passei de fuga.

Segui... Segui para as pequenas casas, senti vontade de lançar braçadas ao azul turquesa. Comprar um chapéu e fumar recostado a uma velha árvore. Senti que sonhava e não precisava acordar tão cedo.

Trecho Orfão II

Trecho Orfão II

(Breve trecho sem complemento.) "Correremos entre as horas de dias lentos, Contra espiritos e o que há de Divino, em cada canto de terra, sonhos e amores tocados. Acompanharemos a perigrinação dos pássaros ao Norte As correntes marítima e cada giro e destruição dos furacões. Rezaremos aos Maias e dormiremos no leito de Buda. Avançaremos mais rápido que uma locomotiva E a cada terremoto causado pelo batimento seco de nossos corações Deixaremos que o mundo caia e o Apocalipse chegue Para a cada manhã reconstruirmos o Mundo."

Trecho Orfão.

Trecho Orfão


"Ela me lançou olhos de fera. Olhos de fera calma que espreia a vítima, pronta para dar o bote. Há muitos que descrevem o segundo em que a paixão é concretizada como um momento de silêncio e calmaria, um transe-pisque-hindu, mas é mentira, e por assim ser, digo... É mentira. Não houve calmaria. Lentidão sim, mas não há calmaria. A respiração rugi como tambores. Era eu quem andava em direção a ela por pura fragilidade de caça. Na realidade podia ouvir o farfalhar da relva baixa, enquanto minha fera se esgueirava com fome. A paixão não é calma, a paixão é rapida, é abrupta. É Deus, os anjos e suas espadas. Ela corre pelo sangue, e com ele escorre pelo rompimento sobre a carne quando se é atingido. E ela, munidade da minha fé e sua beleza, cravou as pressas em minha jugular. Desde então , sou dela como o coelho pertence à mandíbula do lobo. E lhe amo como Deus ao pão e o vinho"

Mil e uma maneiras de se viver em harmônia com seu lar.

Mil e uma maneiras de se viver em harmonia com seu lar.


Dizem que há diversas formas de se sofrer um acidente domiciliar. Tantas quanto se pode imaginar ou escolher. Uma porção de armadilhas em seu próprio lar, basta um descuido rotineiro.

Tombo escada abaixo. Gás vazando. Água fervente. Panelas. Vasos em ganchos frouxos. Eletricidade, Facas.. Enfim.. Mas um, em particular, sempre me aterrorizou. Uma queda no banheiro sempre me matou de medo, de verdade.

Um dia, após todo um dia de trabalho, cheguei em casa e fui direto limpar todo o cansaço com uma ducha de água quente. Anteriormente havia trabalhado como montador de parque e, até então, pensava ter encontrado o pior emprego do mundo. Carregar peças de metal durante toda a tarde, sob o sol a pino. Seria impossível algo tão ruim e cansativo, mas logo pude constatar que a própria palavra trabalho carrega em si uma monstruosidade enorme. Um cansaço natural do ato, imagino.

Mas já não carregava mais peça de metal nenhuma, nem ouvia mais os comentários sobre bundas que desfilavam em frente ao pátio de trabalho. Agora, simplesmente, falava horas a fio com estranhos devedores, tudo por telefone, e só. Fácil. Mesmo assim meus braços doíam. Minhas costas tentavam voltar a postura original depois de tanto tempo curvado e meus ouvidos zuniam...Horrível

É estranhamente admirável os sacrifícios que um homem pode fazer para tomar sua cerveja honestamente.

E enquanto pensava em números e cigarros, embaixo d’água, a mesma corria por mim e se juntava ao sabão, em torno do meu pé, formando uma poça escorregadia. E foi exatamente nela em que escorreguei enquanto tentava alcançar minha toalha.

Foi muito rápido. Milésimos de segundos. Deslizei, rodopiei e consegui me amparar nas paredes antes de entrar de encontro nelas com minha cabeça.

Aquilo me foi tão apavorante que não sobrou reclamação para balbuciar. Nem dores contra as quais praguejar. Zumbido para escutar. Eram apenas eu, a parede, o sabão e um banheiro vazio, pequeno e perfumado.

E tinha sido eu mesmo que o havia lavado, há um dia atrás.

Então, constatei, que é assim que todo homem deve morrer.

Nu e sozinho, tentando se limpar da sujeira de seu dia.

Sobre bebidas, abandono e um pai sem filho

Sobre bebidas, abandono e um pai sem filho.

Quando o Sol baixou atrás das ondas, eu já havia deixado os lençóis em que passei todo o dia enrolado.

7 da manhã, minuciosamente cronometrado, o aroma de jantar recém preparado paira pelo jardim, em frente a minha porta, pórem, apenas o atravesso devagar, de mãos nos bolsos.

- Aqui.- Digo, entregando as chaves da minha moradia provisória à garota de sorriso simpático e estudado, para depois me lançar ao frio desconhecido da cidade.

Sinto o abraço esperançoso do Atlantico, salpicado de grãos de areia. Faço uma breve contagem de dias ( me certificando de quanto tempo ainda me resta tão próximo de mim mesmo) e deixo algumas moedas sobre aquele velho balcão. Poucas moedas compram o conhaque, o calor e um bocado de conversas.

Aquele falava sobre mudanças, o outro sobre construção civil. Esse falava sobre enbarcações e mulheres. Ele, o de olhos mais sofridos, falava sobre a morte do filho.

E entre o escutar e beber deixo o tempo correr e o frio, mais forte, frio de madrugada, me afagar os cabelos e levar ao quarto.

- Quarto 3.

Atravesso o jardim, novamente, tateando a memória.

Talvéz amanhã não faça tanto frio. Talvéz receba uma ligação.

Talvéz alguma criança nasça para sanar a dívida de Deus.

Silvo

Silvo

Por quanto a relva seca se estendeu

por sobre o asfalto e as rodas?

E os meses secos

por sobre as estações circundutas?

Movimentei meus olhos e dentes,

e a língua por entre os dentes,

e o sangue

por entre as veias.

Corri-lhes e sangrei

e esqueci.

O isolamento é suave,

quase tão suave quanto o suor quente

de uma xícara de café ao fim da tarde.

Como o silvo

entre a relva seca,

no pulmão sem fôlego.

Durante as noites

em que o silêncio resguarda a queda,

os lobos têm fome de lebre.

Cantiga do Silêncio

Cantiga do Silêncio.

E o silêncio é o senhor dentre os 4 cantos.

Desobedecido apenas pela porta do velho armário que grita seu ranger.

O estático, a marcha dos insetos.

A fina camada de poeira sobre a estante, nevando celestial sobre os livros.

Sem sombra, sem calor, sem tempo.

E na pureza do nada, a ausência gargalha.

Transe

Transe


As noites andam quentes demais. O que me faz repensar a veracidade de todas aquelas teorias, que andam circulando pelos jornais e afins, sobre um tal superaquecimento global e possível fim do mundo. O fim dos tempos como uma grande panela de pressão.. É tão amedrontador quanto instigante.

Sinceramente, nunca me importei com isso. Quando era criança, passei longos dias de angustia e medo, na expectativa de que uma dessas pseudo-teorias se concretizasse, e elas nunca vieram. Nada aconteceu... Mas talvez agora.. Talvez agora algo seja certo, algo grande possa estar para acontecer. Talvez o suor em minha testa, o enjôo e o mal estar sejam meus impulsos primitivos de fuga premonitória. O momento de minha migração em ‘V’ pelo espaço.

Mas, enfim, a noite estava quente. Quente o suficiente para ter me feito tomar o quinto banho do dia.. Ou seria o sexto? Não importa! Estava realmente quente.

Sem pensar, retiro as roupas e as jogo num canto qualquer do banheiro,(de onde só serão recolhidas amanhã, se bem me conheço) e coloco-me abaixo da forte, fria e revigorante ducha d’água.

‘Deus, eu te amo! ‘

Primeiro o corpo. Braços, pernas, barriga.. E então a cabeça, o golpe final. O meu transe religioso.

Nesse instante lembro-me de um daqueles programas de canais ‘educativos’.. Discovery.. National Geografic.. Havia um homem, um daqueles destemidos e sábios, ele dizia que perdemos uma quantidade significativa de calor pela cabeça (bem apropriado) e que ‘ a perda de 3 graus do corpo é o suficiente para se perder a consciência’.

3... Míseros 3 graus!

1 – 2 – 3.

Assumo que a idéia me acometeu por um momento... Afinal, estava muito quente, mas não.. Não dessa vez.

As paredes do quarto incorporavam um efeito ‘forno’. Não havia nem ao menos enxugado o corpo mas ele teimava, e já podia senti-lo secando. A cada segundo um pouco mais... Contagem regressiva.

Suspiro, e me sento à cama. Braços no colo, imóvel. A luz da tv me ilumina, assim como todos os cantos do quarto, fazendo dançar sombras nas paredes.

Pernas e pernas. Programas de madrugada. Garotas bonitas sorrindo e mexendo com o imaginário de pobres rapazes solitários e insones.. Ou pastores! Pastores sérios e de aparência pacifica, orando em nome de suas dezenas de telespectadores fiéis e necessitados.. (Posso imaginar a cena.. Joelhos prostrados, braços em torno das tv, repetindo suas palavras de fé.)

Todos sozinhos, procurando uma forma de reafirmar suas própria existência. Encontrar, no silêncio da madrugada, aquele pouco e tão significativo pedaço de nada que lhes faz tanta falta.

Todos, inclusive eu.

Deito e o deitar chacoalha os pensamentos em minha cabeça.

Talvez tenha me arranhado em algum lugar, um pouco de mim pode ter ficado preso a um velho pedaço enferrujado de arame. Ferro, um fiapo de roupa e eu.

Incoerência dar meia dúzia de passos retrógrados para resgatar esse algo perdido. Meia dúzia de passos se torna dez, que ao passo se tornam 15 e esses, por sua vez, andariam 20 anos.

Incoerência, quando na verdade o que ficou fui eu.

Esfrego as mãos no rosto. Rosto molhado. Há 5 minutos atrás estava seco.

Talvez mais um banho.

As noites andam quentes demais.

Meu Crime

O meu Crime
Lá estava ele.
Parado, a uns 4 metros sobre minha cabeça.
Asas estendidas num esforço brutal, na tentativa de avançar um pouco no ar, seguir para o lugar qualquer que almejava... Mas não. Nem se quer alguns centímetros eram conquistados.
Durante algum tempo me perguntava o motivo daquela barreira invisível... O que aquele pequeno pássaro branco teria feito de tão perverso para ser seguro pelas grandes mãos invisiveis de Deus?
Ele se vira, e desiste. Voando ao sentido que lhe foi imposto.
O que teria feito? Qual o crime que aquelas penas carregam?
Quais os crimes que me fizeram seguir o mesmo caminho?

Ao Todo

Ao todo.

Eu que não sou somente eu.

A cada quilometro rodado me tornei o próprio quilometro.

Em tudo o que foi visto, a própria imagem.

Sou todos os sorrisos, as bocas e gritos; o sol em laranja sobre os montes, amarelo em cerras.

Todos os cheiros, e gostos; o silêncio e as festas em uma noite.

Tenho as mãos frias do sul, e o peito quente do norte.

Todos os suores e frescores; regras e transgressões, a rua calma de um domingo à tarde; o cheiro de óleo diesel num final de sexta.

Aperto de mãos e despedidas; beijos e mordidas.

As lagrimas marejando a felicidade e a tristeza.

Espaços e trincos; motores e redes; nomes.. amores

O amor, e o que sobra ao fim dele. Mas ainda a volta do amor, e todos os próximos.

Sou todos os quilômetros, mas não sou ninguém.

Sou todo o resto..

E ele não tocou

Quarto

Tudo se mantinha imóvel enquanto eu podia sentir o pendulo do relógio se mover entre minhas costelas.

Esquerda, direita..Esquerda, direita.

Encolho-me sobre o amontoado de quilômetros e eles são gelados. Só quilômetros, nada mais me acompanhou, nada mais me esperava ao chegar.

Talvez deva mesmo ter perdido algo mais enquanto atravessava a ultima ponte.

Por instantes, realmente penso se peixes poderiam se alimentar de sentimentos... Mas não! Isso é uma particularidade nossa.

Se uma vez disseram que a rua é pequena demais para abrigar o mundo, hoje, digo que vai além, muito além, ele escapa ao tamanho das cidades, dos estados, da vista.

A muito o ‘meu mundo’ saltou de minha mochila... Rolou para o acostamento.

Então sento à beira da cama. Sento e afasto de mim tudo que está à minha volta. As roupas, sapatos, sonhos, tempo, afeições.

Afasto de mim meu próprio nome.

E por fim encontro. No chão, ao pé da mesa, o amor de minha vida espalhado com grãos de areia. Nada mais que isso, amor e pó sujando o chão.

Fecho os olhos e tento dormir. Amanhã pela manhã alguém varrerá isso para fora.

Dose Tripla

M.(eses)

Entre as benções no escuro

um gosto velho

o cheiro puro

E sempre o silêncio

ao que se dizia:

"Em 8 meses

melhor um dia."

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Maio

Dedos pequenos e brancos tocavam meu peito.

Dedos e olhos, pernas e costas.

Tiros de 'emoção qualquer', indecifráveis, pintavam as paredes do quarto. Talvez um deles tenha sido o autor daquela pequena mancha vermelha no interior de sua coxa.

'Para sempre...'

Não meu bem. Não me force a dizer amores sobre o seu corpo, nem me faça crer no descaso do meu desejo, na paixão pelo teu seio...

Pela manchinha em sua coxa.

Engulo a promessa e ouço o sussurro do Espírito Santo.

'..te..amo.'

No santuário do seu ventre, descarrego meus pecados.

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Soba não-fuga do desejo.

E ela tem olhos de fera.

O olhar sorrateiro pré-bote, uma voz rugido paralisante.

Minha realidade ébria se molda e recorta em pequenas lembranças de passado dissolvido em desejo irreversível. É sempre irreversível. O salto não cessa no meio.

Respiro fundo e me entrego a essa cerimônia de sacrifício. Perder a alma, ganhar sua presença. Uma troca justa e não menos adorável.

Sob pequenas gotículas de chuva, primórdio arrancando a presença futura, me vendo e espero o derradeiro fim de presa-amante que me resta.

Os olhos de fera continuam mirando, e talvez eu faça barulho o suficiente esperando ser encontrado.

Dois tiros.

Praça

Os bancos, árvores

A multidão

Passos, postes

A solidão.

Vocês, cheiros, sinais

As luzes das lojas

São sempre iguais.

Mas você não esta

Aqui ao meu lado.

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À Côté

Linhas finas e velozes, feito os fios castanhos de seus cabelos..curtos.

Sinto que meus batimentos cardíacos vão a mim enquanto desvio o olhar do dela.. Ambos Tudo se limita a isso. Sorrisos amigáveis seguidos por longos períodos de silêncio.

Não temos tempos. Tempo? Cedíamos nossos pescoços a forca.

Os olhos voltam a me atingir. Seus enigmas castanhos, castos.

Sua realidade de carne, algo que alguém como eu não pode entender.

Talvez ninguém ali pudesse entender ao certo, mas sabíamos exatamente o teor de seu significado. Havíamos sido condenados pelo acaso.

A traição nunca me pareceu tão doce, tão leve... O acaso irreversível.

Muito rápido para se negar, e bonito demais para se pedir perdão

A Marcha Perfeita

Marcha Perfeita

É só mais uma tarde, igual a tantas outras.

A mesma cor desbotada das paredes, aquecidas por um breve feixe de sol simbólico... Capricho de um dia sem importância.

A mesma sensação de perda da sensibilidade nos dedos.

Malditos dias frios, não se contentam com tantas das minhas lembranças e agora querem me tirar os dedos também? Bom, deles sim, eu sentiria falta.

Já faz um bom tempo que não a vejo.

Inconscientemente, costumamos lembrar justamente dos ‘primeiros dias’. Dias quaisquer, enfeitado por uma glória e beleza sem sentido. Um, como qualquer outro, repleto de lembranças moldadas perfeitamente para cobrir o quão vazio aquilo tudo significou realmente.

Pois eu prefiro o ultimo dia. A sensação latejante em minhas têmporas, que imploram uma ultima e rápida olhada para trás.. Mas eu resisto.

A mala pesando o ombro, enquanto eu executo a marcha perfeita, repleta de uma paixão e bravura tão forte quanto à dos soldados desertores.

Ecoavam os tambores anunciando o fulgor de mais um punhado de amores que se partiam em meio a aquela rua fedorenta.

E ainda assim, é só mais um dia frio, desbotado e sem sentido. E por mais que eu tente mascara-lo com qualquer poesia cravejada de disparates, não posso mudar o fato de que, naquele momento, simplesmente fui embora.

Beco

Beco



Diversos pequenos quadrados uniformes preenchem todo o caminho frente aos meus passos.

Irregulares e perfeitos, e por algum motivo isso me perturba.

Tão débeis em suas formas, mas mantendo uma imagem perfeita de controle. Tão imensos mais ainda assim, pequenos.. Ínfimos, feito meu caráter.

E sem questionamento, o descontrole dita meus passos sobre as figuras divinas e me entrega o caminho e paisagem abandonado.

O amável veneno corre pelos meus braços e pernas, e me prende ao chão, destruindo toda a imagem de esperança que ainda guardava sob a pele. Se um ruído pudesse ditar a dificuldade de se mirar os sentimentos, ele soaria como seda. Macio e enganoso.

As luzes divinas rebatem entre as nuvens, e são lançadas em meio a multidões indolentes e suas canções à mortalidade irrisória.

Pobres cegos.. Longe das sombras, longe da virtude do esquecimento.



E quando as sombras tomam o lugar da matéria e a realidade se distorce, ouço meu nome vindo de uma caverna qualquer, de concreto úmido. Queria poder imaginar que esses sons proviessem de línguas santas, de bocas angélicas... Mas todo o conjunto de minha imagem lhes seria asquerosa.



E no sobressalto do desespero, munido de descrença, me lanço ao infinito, às ondas escuras e inodoras. Por chão toda a verdade e toda a beleza!

E por todas as ações empíricas de minha alma, desisto e me lanço no caminho do punho cerrado do inevitável.

Benção

Benção

São 4 pequenos anjos renascentistas esquartejados sobre minha estante.

Uma ótima maneira de se lançar num novo Outono, moldando uma nova pré-vida que, emaranhada entre as tripinhas divinas, apontam um futuro prospero.

Foi há alguns meses... Eles despencaram do paraíso para cair exatamente sobre minha calha. Fui acordado em meio à madrugada por suaves choramingos e um farfalhar de asas recém formadas, que cheiravam a carne fresca. Pequenas penas champanhe espalhadas pelo meu telhado.

Um por vez foi delicadamente retirado de lá, e alimentados. Dei-lhes torradas e leite para comer, afinal, não sabia qual regime pequenos santos renegados deveriam seguir e, no momento, aquele me pareceu um banquete de pureza à altura (o que, agora, me causa certos questionamentos).

Pela manhã, eles cantarolavam longos cânticos em latim. Cheiravam à grama recém cortada, ou até mesmo a aquele odor úmido que precede as chuvas. Todos tinham a pele estonteantemente clara, a ponto de poderem refletir um dia inteiro.

Com o passar de algumas semanas já haviam se curado dos ferimentos causados pela queda e até conseguiam se aventurar em breves vôos pelo corredor, enchendo a casa com seus risinhos infantis... Um dia isso me irritou.

A beleza inexorável da santidade daquelas criaturinhas aladas começava a se tornar perturbadora, e aos poucos, aqueles rostinhos outrora tão simétricos e macios tornavam-se monstruosamente deformados.

Voavam por sobre minha cabeça, desengonçados.. Pousavam feitos abutres.

Não havia mais lindos cânticos... Esses deram lugar a gritos de horror e ameaça. Suas peles tão brancas, agora já muito cinzentas, passaram a refletir por dias inteiros os meus próprios pecados.

A fascinação se foi...

O puro não pode nos ser exposto por muito tempo... Talvez ele não possa nem se quer alimentar a própria magnitude do que o compõe.

Hoje o Outono enfim começou.

Penas amarelas e secas dançam harmoniosamente, junto ao vento, pelo meu quintal.

A beleza me é horrenda.

3:00 am

3:00 am

O silêncio já era o bastante para mim durante aqueles longos segundos em que nossos olhos travaram um qualquer tipo de dança, ou luta.... Não me parecia fazer diferença.

Seu rosto tão bem cuidado não combinava em nada com a aparência daquele velho e empoeirado quarto. Definitivamente, o amarelo envelhecido dos postes de luz, que atravessava a janela e se esparramava em listras sobre nós dois, não combinava com o ‘azul dela'.

Não havia um clima de simples encontro, de deslize de circunstâncias. Eu senti (e imagino que não fui o único) que havia uma certa sombra de fuga. Uma corrida para a cela em que ambos queríamos estar, onde todo o resto passaria zunindo sobre nossas cabeças. O mundo era grande demais para atravessar as grades, ou passar por debaixo da porta.

Foi então que ela me tragou com um longo suspiro.

Caído sobre meus joelhos, na escuridão, a encontrei pelo cheiro e senti seu gosto. Por vezes meu coração deixou de bater. Eu nitidamente ouvia o pulsar de um coração.. De apenas um. O corpo dela adquiria uma tonalidade diferente, e me aquecia.

Acho que foi exatamente nesse momento que um pouco disso tudo, em contato com o calor, se fundiu em mim.

Sua declaração de amor soou como gemido e me sentenciou.

As palavras caíram, o calor se foi, os gemidos silenciaram, e o amarelo envelhecido desbotou até embranquecer. Só sobrou o ‘seu azul'.

Pela manhã fui enforcado.

Reflexo

O Reflexo

Me deparei com a verdade absoluta. Ela se esgueirava pela esquina sem nome.

O brilho cintilante da água da chuva sobre o asfalto concede um sentido, e sentimento especial ao lugar vazio e escuro.

Reflexo era o nome dele. Um pequeno gato preto, de peito branco. Sentado sobre o telhado, à minha frente, me observava, com olhar majestoso e sábio.Eu, por minha vez, prostrado sobre um pequeno banco de madeira frouxa, velha, observava atento, cada movimento dele, cada ‘palavra'.

Reflexo sabia tudo sobre mim, e dizia que éramos iguais, tínhamos almas felinas (o que entendi como miserável, ou sabe-se lá o que pudesse se entender).

Procuramos nos aquecer - ele dizia. - Nos equilibramos sobre os muros, saltando sobre a cidade, enquanto ela dorme.

Ele me mostrou que a resposta estava num cesto de ferro vazio. Entregou-me o sentido que faltava a todas as perguntas sem respostas, e esse, por sua vez, eram igualmente vazio.

Então, senti o cheiro forte de um passado distante, o presente passou de raspão pelos meus bigodes, me fazendo estremecer.

Não sei em que momento ele se foi, caminhando de leve por detrás dos postes de luz.

Não sei quando eu fugi.

Tarde de Fuga

Tarde de Fuga

Hoje, rompi com toda consciência humana que se esgueirava entre meus pés.

Veloz, senti o gosto seco do fugitivo, saltei as listras opacas por onde minha sombra, laxa, se projetava, não menos opaca.

A eternidade me foi jogada aos pés, e em passos apressados, pisei sobre ela. Eu a admirei.

Os olhos se ofuscam, com pontas e ruídos, e numa dança doce, tudo some, ao passo que uma grande mancha azul, límpida, se desloca.

Minha racionalidade se esvai, junto com tudo que é material e civilizado.

O nome some, o pensamento some. A dor é extinta.

Extingui todo o sentimento humano do meu peito.

E com todos os sentidos embaçados, enxerguei o divino. O lindo e silencioso Divino.

Acenei, e o abandonei.

Não sinto saudades.

Companso Pulmonar

Toquei os dois pés no desconhecido.

Onde vultos trafegam com a velocidade de trens e tudo esta sujeito a ser deixado para trás na rapidez com que se formam os sonhos.

As impressões são chapiscadas de um cinza velho, perdido, feito labirinto. Nem um sopro de lirismo, nem um julgamento pela síndrome de Aquiles.

Só dois pés no desconhecido, e pensamentos desnorteados pela incapacidade de não saber o ser.Quando não se tem nome, o necessário é cedido pela mão suja do diabo.No asco a sua compaixão.

E em meio às bacantes, ouviste o nome, rebentando o ar e direcionando todos os excessos, mas esse nome não é seu.

Por não o ser, o mundo te carrega... E te lança contra a relva de qualquer terreno abandonado.

Sim, por um momento respirei o desconhecido.. Respirei fundo, e me sufoquei.

Azul e Preto

Azul e Preto

Sonolência em azul e preto.Numa fuga voraz e sem movimentos, cortando o duro concreto entre palavras e devaneios de um poeta francês.

Uma dor lasciva e viciante embaça todas as raças, todos os credos e culturas.

Na escuridão abismal se proclama o nascer de uma nova galáxia, circundada por gigantes sulcos erosivos formados pelo próprio dilúvio. A solidão divina atrás do vidro.

E no interior, a solidão de cada par de olhos, furtivos, esperando a hora da retirada teatral, em direção à suas camas.

"O sempre chegando, indo a todo canto". Diria o poeta francês!

E os sonhos nascem e morrem na mistura desordenada do azul e preto.