sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A queda do Front

Deveria parar de marchar.
Os passos criam novas paisagens e o peso do mundo recai sobre o pelotão. Já não posso erguer o pescoço.
Durante anos a doença instalou-se em meus músculos, as veias haviam empoçado, porém, marchei. E a marcha curou-me o corpo e estendeu a vitória sob o céu, plano e rígido.
O pelotão canta ao avanço e eu só tenho 25 centavos no bolso.
Cantam sobre antigas guerras e epopéias românticas, mas a fome ensurdece.
“Mais mil passos, soldados! A próxima cidade nos promete camas quentes e uma ducha! Mais mil passos e torçam para abraçarem um céu de azul limpo, a próxima cidade estará em ruínas.”
Ainda tenho 25 centavos, talvez dê para um souvenir.
Mas o céu ainda é plano e rígido. Como a rótula de meu joelho, como as vértebras de minha espinha.
Já não posso erguer o pescoço. E a parada seguinte logo despontará no horizonte.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Quarto Andar

A tarde escorria por entre os prédios quando alcancei meu andar. Era sempre um alivio tirar os pés daquela caixa de metal pequena e barulhenta a qual os moradores mais antigos chamavam de elevador. Era agradável sentir o chão firme sub os pés e deixar de pendular andares acima a deriva de um velho cabo de aço que, imagino eu, já estaria saturado de erguer senhoras gordas.
Pois bem, com a graça dos céus sai da pequena caixa metálica e caminhei até a porta do apartamento. Trazia algumas cervejas dentro da sacola, as que pude comprar com o dinheiro que sobrará após a bebedeira que havia iniciado ao meio-dia.
O apartamento cheirava a cigarro, cerveja quente e comida semi-pronta, definitivamente não era algo com que eu me preocupasse, na verdade adorava aquele cheiro, aquela iluminação fosca, as janelas abertas para a vigília dos vizinhos. Durante meses aquele havia sido meu lar e acredito que nesse momento já havia se adequado totalmente a mim. Meu útero.
Peguei uma das latas, que ainda estava gelada, e deixei a sacola no chão, próxima ao colchão do quarto.
Dei o primeiro gole naquela lata, gole que já não mantinha o mesmo prazer dos primeiros do dia em que toda a alma é lavada, jogando todas as causas garganta abaixo, essa lata, em particular, tinha como função tratar o corpo. Alimentar o doente após o fim da enfermidade para dar-lhe forças.
Debrucei-me na janela, como de costume, e observei o movimento da rua. A vida no asfalto. De cima era como enxergar um teatro de fantoches, ou um viveiro de cupins, cada um com suas obrigações, cabecinhas autônomas cortando o asfalto e batendo suas antenas contra outras antenas que por sua vez voltavam do trabalho, procuravam diversão, bebiam suas latas de cerveja.
Cupins, fantoches, humanos! O que seriam homens se não componentes da base de uma sociedade viva por si só? Incrustados em suas grandes cascas de calcário e concreto, dando vida ao caos de uma vontade maior. No centro de uma cidade grande como essa, respirando os gases da grande mãe. Da colônia.
Qual o mais próximo de si mesmo que alguém pode alcançar se não a barreira dos desejos primordiais para toda forma de existência? A fome, a dor, o calor, a sexualidade (essa última mais do que o resto).
Termino mais essa lata. Pronto para manter a dignidade com mais 350 ml de desculpas particulares.
Apesar de tudo, é só um caso de desejo básico.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Janeiro.

Chove fino sobre a comprida rua Sete, cobrindo-a de manto cinzento. Um branco sujo. Chove fino, mas tão fino que somado ao calor dá-se a impressão de caírem cinzas do céu. Um teatro modesto de Pompéia.
O silêncio, presente no passo de cada passante, assiste ao olhar atencioso lançado pelo velho à vitrine de sapatos femininos, as senhoras e seus passeios de fim de tarde, ápice da emoção cotidiana.
Os carros fluem num tráfico lento, quase orgânico, de motores abafados e cinzas de chuva salpicando o pára-brisa.
Os jardins dançam, as máquinas registradoras cospem notas de dois reais.
Num final de tarde comum o mundo, alheio, dá voz a chuva fina. Dá voz ao silêncio.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Primeiro Evangélho segundo a Guerra Fria.

No último segundo a terra sussurra, estremecendo sorrisos e envolvendo todo o céu em seu enorme abraço de poeira.
Sobe o majestoso pilar da digníssima humanidade, fazendo arfar suas asas.
A água borbulha para ouvir ao sermão de st.Antônio., as palmeiras na praia da Ilha de Natal dançam ao verão afélio posando para o novo cartão postal.
E com o ruído de cem milhões de palmas presentes, a grande fissão de Deus espalha seus anjos de urânio para abençoar todas as nossas crianças.
Que seja bem vindo o novo Gêneses.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Trecho.

“Uma neblina láctea e densa cobria a cidade. Svidrigáilov tomou uma calçada de madeira suja, escorregadia, na direção do Pequeno Nievá. Teve a impressão de ter visto as águas do Pequeno Nievá subirem muito durante a noite, a ilha de Pedro, os caminhos molhados, a grama molhada, as árvores e os arbustos molhados e, por fim, aquele mesmo arbusto... Agastado, começou a examinar as casas, tentando pensarem alguma outra coisa. Na avenida não cruzou com um único transeunte, com um só cocheiro. As casinhas de madeira em amarelo claro, com seus contraventos fechados, tinham um aspecto triste e sujo. O frio e a umidade lhe penetravam em todo o corpo, e ele começou a sentir calafrios. De raro em raro cruzava com letreiros de mercearias e vendas de legumes e lia minuciosamente cada um deles. A calçada de madeira já terminara. Ele já alcançava uma grande casa de pedra. Uma cachorrinha suja e gelada cortou-lhe o caminho com o rabo encolhido. Um individuo morto de bêbado,metido num capote, estava estirado na calçada, atravessado de cara para o chão. Ele o olhou e seguiu em frente. A esquerda projetou-se uma torre de bombeiros. “Vejam só! – pensou ele- ora, eis o lugar, por que ir à ilha de Pedro? Aqui pelo menos tenho testemunha oficial...” Por pouco não sorriu dessa nova idéia e dobrou para a rua -skaia. Ali ficava um prédio, grande com a torre dos bombeiros. À entrada dos portões do prédio, grandes e fechados, um homem não muito alto apoiava o ombro neles, metido num casaco cinzento de soltado e com um capacete de cobre como o de Aquiles. Com o olhar sonolento olhou com frieza e de esguelha para Svidrigáilov, que se aproximava. Em seu rosto notava-se eterno sofrimento de resmungão, que marcara de modo tão azedo todos os rostos da tribo judia sem exceção. Ambos, Svidrigáilov e Aquiles, ficaram algum tempo se examinando em silêncio. Por fim Aquiles achou uma violação da ordem um homem que não estivesse bêbado estar em pé a três passos dele, encarando-o e sem dizer uma palavra.
- E o qué senhór dese-e-eja aqui? – pronunciou ele, mas ainda sem se mexer e nem mudar de posição.
- Nada, meu irmão, bom dia! – respondeu Svidrigáilov.
- Aqui non é logar.
- Meu irmão, estou indo para terras estranhas.
- Para terras estranhas?
- Para a América.
- Para a América?
Svidrigáilov tirou o revólver e armou o gatilho. Aquiles soergueu as sobrancelhas.
- O que é isso? Essas brincadeiras aqui non é logar
- Sim, mas por que não seria lugar?
- Porqué non é lugar.
- Bem, meu irmão, para mim dá no mesmo. O lugar é bom, se te perguntarem, responde assim mesmo, que foi para a América.
Encostou o cano do revólver na sua têmpora direita.
- Mas aqui non pode, aqui non é lugar! – Aquiles ficou agitado, arregalando cada vez mais e mais as grandes pupilas.
Svidrigáilov apertou o gatilho."

Crime e Castigo - Fiódor Dostoiévski