quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Patos, traçado migratório e velhice.

Patos, traçado migratório e velhice.


Todas elas falavam ao mesmo tempo feito um bando de patos perdidos após errar o caminho migratório. Ao que posso perceber, e já me havia sido dito previamente, era apenas um grupo de adolescentes que já se conheciam há alguns anos ( ainda se assemelha a um grupo de patos barulhentos), motivo pelo qual era dado o direito de tecerem conversas a fim de colocar suas vidas em dia e sincronismo.

Estávamos todos em uma lanchonete, ou café, dessas de cidades interioranas. Frente à praça, onde transeuntes de olhos apagados puxam suas crias que por sua vez apertam os passos para acompanhá-los, uma bela igreja de estilo indefinido em seu silêncio póstumo esperando seus devotos das 6 horas, e aquele grupo de garotas falastronas.

Lembro-me de olhar ao redor tentando identificar uma figura que me concedesse imagem e semelhança ou apenas um outro cidadão ávido por nicotina, o qual tomado de uma coragem maior que a minha, já pousasse na mesa um cigarro que daria carta branca a todos os seus seguidores para que despejassem sua porcentagem de fumaça sobre a cabeça dos clientes. Mas é cedo, são apenas elas. Acendo o primeiro cigarro e sinto olhares reprovadores, um dos quais de Adriana.

Adriana era minha companheira, e por conta dela estávamos em devida situação. Agia como a fêmea alfa do bando. De volta à cidade pequena, após uma estadia longa na capital, trazia roupas novas, um sotaque mais polido, experiências sexuais alternativas e um namorado fumante (como também um bocado de egocentrismo e alusões), o que era o suficiente para ser automaticamente proclamada a representante oficial da precariedade de aspiração e estagnação psicológica da nova safra de adolescentes dessa geração. E com louvor! Ao menos era como eu a via, mesmo nunca lhe tendo confessado.

- Você vai fumar aqui?

- Vou. É bem ventilado, e não há placas para...

- Elas podem não gostar.

Elas. Elas deviam estar ao norte, agora. Acasalando com machos que brigariam, por horas, para decidir de quem seria a linhagem de sucessores que se tornariam futuros lidere como você.

- Ah, tudo bem, Adriana. Pode Deixar. Só, por favor, pede para ele deixar a mão mais perto da janela para a fumaça ir embora.

Sorrio.

Não saberia dizer o que me passou exatamente pela cabeça diante de tal permissão. Talvez a gratidão de um cão presenteado com uma coleira de corrente mais longa, ou a indignação de um meio castrado que haveria de sustentar toda sua divida com a existência em cima de apenas um testículo. Pior, poderiam estar me dando o alvará, ainda que condicional, de me juntar ao bando. Olho para a rua imediatamente e sinto a mão de Adriana encontrar a minha e apertar-me os dedos, com o carinho de quem se orgulha da própria escolha que acaba de ser aprovada pelos restantes. Continuo olhando fixamente para a rua. Desejo uma espingarda e um labrador.

Pacata. “3 horas da tarde é um ótimo período para um passeio familiar pela praça” constato. Dois garotos brincando de ameaçar pombos. Velhos contra-atacam alimentando os pombos. Jovens casais encontram abrigo sob a sombra de grandes mangueiras para prometerem hoje o que quebrarão amanhã. A calmaria dos carros que respondem ao dia aberto com lampejos de Sol em seus pára-choques. Casas pequenas de portas esguias e altas suspiram café forte nos transeuntes. O vento quente que me acertava em cheio o rosto e fazia a fumaça de meu cigarro dançar flamenco sobre a mesa da lanchonete.

- Ei, a fumaça!- Sinto apertar meus dedos..

Sorrio condolentemente e torno a desviar minha atenção para a praça. Por um momento pude construir toda uma velhice por aquelas ruas. Pude imaginar um passeio ao fim da tarde para esticar as pernas e lembrar ao sistema circulatório de que faça seu trabalho. A busca pelo pão de cada dia e do troco certo para o jornal. Pude imaginar o compromisso de alimentar os pombos. O cigarro... Não. O cachimbo, ao fim da noite, onde sozinho, concluiria o débito diário de uma vida agitada. Totalmente só.

- Ah, a fumaça de novo!- Sinto a mão dela sobre a minha.

Seria maravilhoso.