sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Deslumbre, ou A Maldição do Touro Cretense

"Já havia assistido a este vídeo tantas vezes que se fizera possível saber todos os detalhes do que se passaria nele, e qual era, exatamente, a ordem cronológica das ações. Apesar do audio estar comprometido pelas limitações tecnológicas de meu celular (mescladas à dificuldade da filmagem disfarçada), foram tantas as repetições que todo o dialogo era muito claro, para mim.
Antes de passar a assistir repetidas vezes ao vídeo em minha casa, havia visto a peça duas vezes ao vivo, a primeira por acaso e a segunda para o exato registro do espetáculo. Era uma representação de Otelo. Nenhuma companhia famosa, na verdade paguei bem pouco para assisti-la, e não fui à arena com muitas expectativas. A verdade é que minha falta de fé na encenação e montagem da peça se provou real, não foi nada espetacular. Na verdade era mediocre, talvez muito abaixo disso, com exceção de Desdêmona.
Ao vê-la pisar no palco senti certo palpitar. Não que fosse uma mulher incrivelmente bonita ou de sexualidade exacerbada. Cabelos escuros e compridos, presos num rabo de cavalo (que julgo que fora feito com base no que deveria ser um penteado ‘de época’), estatura mediana, corpo magro (mas não desprovido de curvas). Mãos pequenas. Fazia força para interagir com os outros atores e, por mais falta de talento que tivesse para o que se propunha a fazer (ou seja, atuar), sua presença no palco e suas falas agiam de forma hipnotizante para mim. O enredo seguia e meu fascinio aumentava. Me preocupava o ciúmes de Otelo, me penalizava as intrigas de Iago, me amedrontava o punhal do mouro de Veneza.
Então, a cena final! O suor brotava em minha testa, o corpo queimava com um calor misto de medo e agonia, sabia como iria terminar. Sabia e sofria por isso.

“ Ninguém; eu mesma. Adeus! Faça que sempre de mim se lembre meu querido esposo.”

O corpo da garota caido ao chão. Nas maçãs dos rostos ainda escorriam as lágrimas. Compartilhei as lágrimas. Fiquei sentado em minha poltrona até todo o público (e elenco) deixar o local, só então, após retomar o folego, pude caminhar para a rua. Sentia êxtase.
No dia seguinte foi novamente à apresentação, foi quando fiz o video.

Fazem dois meses que o video foi gravado e, desde então, o assisto todas as noites. Ainda sinto paixão. Ainda amo aquelas lágrimas. “Ninguem; eu mesma...” Mas a distância faz o desejo clamar por mais. “Faça que sempre de mim se lembre....” Minhas mãos não tremem como antes. Os soluços saem sempre no mesmo entervalo de fala. Não, preciso de mais! Preciso ve-la novamente. Sinto algo se apagando em mim e não quero que isso aconteça, não agora!

Theatro Municipal. Theatro São Paulo. Roosvelt. Centros Culturais. Teatros de Arena. Procuro em todos os locais possíveis pela companhia da qual participava minha jovem Desdêmona. Maurício me disse para deixar disso, que ao invés de utilizar todo esse empenho para encontra-la, devia procurar alguma forma de tratamento, pois isso que sinto beira a insanidade. Não me importo com a insanidade, dela todos devem ter uma certa dose. Por que chorar por uma vitória em um campeonato esportivo e não por um êxtase espiritual? Creio que tenha sido algo espiritual. Nunca fui à igreja, não sei como funciona, mas pelo pouco que pude absorver disso durante minha vida, tudo me faz crer que possa ser semelhante. Ouvi as trombetas que se estendem pelo portão do paraíso. A mão que apertava o pescoço da garota era movida pela vontade divina inserida no mouro. Eu vi. Eu senti. Porém, não é mais pela visão de minha pequena que os tremores vêm, é por sua ausência. Pela ausência da paixão, do êxtase. Apesar de tudo isso Maurício me olha com olhos analíticos e desconversa, e se venço no assunto ele me ataca.
“Já disse que está doente.”

Devo assumir que algumas vezes consigo pensar com mais clareza e percebo uma selvageria desmedida em minhas vontades. Não me vejo diferente de um viciado em cocaína, um alcoólatra ou qualquer cidadão preso em uma necessidade crescente de busca por uma quantidade maior de seu objeto de vício. Já faz um tempo considerável que minha produtividade no trabalho despencou de maneira gritante, perdi muito de minha vida social. Na verdade deixei de sair com antigos amigos para estar em casa me “drogando” com o vídeo (ou simplesmente com a lembrança, que a cada dia cria uma coloração mais opaca em minha memória) e quando não fico em casa percebo que a alteração de personalidade que sofri por conta destes últimos acontecimentos afastaram as pessoas de mim. Quem é que se sente a vontade ao lado de um viciado lunático que beira a sociopatia? E é assim que me enxergo nestes momentos de clareza, como um louco. Um doente. Sento-me no sofá e tento tomar uma cerveja, fumar um cigarro. Encontrar novamente os velhos e prazerosos hábitos, mas o tempo traz a abstinência, começo a pensar na garota e, assim como a ânsia do vício havia ido embora, ela volta. Apago o cigarro, tomo o resto da cerveja e saio de casa. Procurarei Desdêmona só desta vez, assim como tantas últimas vezes. A clareza se foi.

Passei a tarde toda ouvindo Vivaldi. É um dos poucos músicos clássicos que conheço então acho que devo, por respeito, ouvi-lo sempre que possível. Me acalma, apesar de não conseguir compreender, em sua totalidade, como funciona a música clássica. Percebo apenas os loopings. Da dádiva ao terror. Só. Mas hoje me mantive dentro da dádiva. Desdêmona se chama Michelle. Conheci-a em uma das minhas incessantes buscas. Já fazem algumas semanas. Me disse que já não interpreta mais, arranjou um bom trabalho como auxiliar admisnistrativa de uma empresa de seguros de um tio, o teatro era apenas uma distração, uma forma de extravasar e vivenciar um pouco a arte. “Tenho muito de atriz dentro de mim, mas não tenho mais muito tempo para isso”, ela disse, “apesar de todos os elogios que recebi. Já te contei que fui chamada para um teste em uma mini-série de tv? Fui uma das 5 finalistas. Aposto que a escolhida foi por indicação pessoal”. Não fiquei feliz em saber do fim de sua carreira, mas não pude ignorar o fato de ser ela o objeto de meu prazer durante tanto tempo e tive de continuar a vê-la.
Passei o dia ouvindo Vivaldi, e no almoço comi um talharim na manteiga. São 4 horas agora, ainda faltam 3 horas até encontra-la. Resolvo já começar a me arrumar. Creio que hoje será uma boa noite, talvez consiga chegar a algum lugar, afinal estamos nos dendo bem. Procuro uma roupa no armário, algo que seja apropriado. Suo frio e já não sei identificar o motivo de meus tremores.

Sento-me no tapete com as costas apoiadas no sofá. Ela dança de meias pela sala, na mão um copo de vinho.
“O que achou da comida?” Digo. Não a chamo de Michelle, não condiz com sua feição. “Ótima! Foi uma noite muito legal! E.. e eu estou tão bêbada!”
Sorri. Também estou bêbado. Junto com a comida foram duas garrafas de vinho, e mais duas desde que chegamos à sua casa. Seu pequeno corpo continua dançando em minha frente enquanto derrama pequenos pingos de vinho sobre o tapete bege, manchando-o.
“Por que parou de atuar?”
Tomo todo o resto da bebida que tinha em minha mão, ela responde sem sessar os passos.
“Já te disse, porque eu não tinha tempo, alias...”
Não aguento.
“Devia ter continuado...”
“Também me achava uma otima atriz!?”
“Acho que deveria recomeçar”
Ela sorri fazendo uma careta, aproxima-se e senta de frente em meu colo.
“Não podemos falar de outra coisa?”
“Ainda sabe as falas de Otelo?”
“Não, acho que não lembro muito bem....”
“Claro que sabe, Desdêmona! Sabe!”
Ela se assusta dando um pequeno pulo em meu colo, depois diz com voz seca.
“Me chamo Michelle!”
“Interpreta! Pela última vez, só para mim!”
“Não!” ela se levanta “Chega, eu não vou fazer isso, não quero falar merda nenhuma seu lunático do caralho!”
Me levanto, também, e sinto que estou gritando. Ela dá alguns passos para trás, cambaleante, derrubando a taça de vinho, mas logo eu a alcanço fazendo os dois corpos cairem no chão. A queda é silenciada pelo tapete felpudo, assim como sua voz pelas minhas mãos que apertam seu pescoço.
“Fale! Vai, eu sei que você sabe! Fale!”
As lágrimas começam a escorrer por seus olhos mas o grito é interrompido pelo peso dos meus punhos. Ela arranha meus braços. Não sinto. Continuo gritando.

“Sai, prostituta infame! Vais chorá-lo na minha frente?”

Sinto o terror em seus olhos e sua boca começa a se mover. Afrouxo os dedos e posso ouvi-la, quase como em um suspiro.

“O meu senhor! Bani-me de vossa vista, mas deixai-me viva.”

Meu coração acelera. Sinto como se todos os poros de meu corpo se abrissem e absorvessem o mundo a minha volta. As trombetas soam. As palavras de Desdêmona soam. Minhas mãos são guiadas pela vontade divina. Choro. Minhas lágrimas caem sobre seu peito, mas não deixo de tomar, para mim, as falas de Otelo. A cada resposta sinto minha alma estremecer. Fecho os olhos. Ela diz, baixo e sufocada.

“Ninguém; eu mesma. Adeus! Faça que sempre de mim se lembre meu querido esposo.”

Suas últimas palavras são mais baixas, mais sofridas, e então paro de ouvi-la. Sinto dores nas mãos e as abro, caindo de costa no chão. Dádiva. Sinto o tremor pelo meu corpo. Sinto paixão, amor. Me sinto completo. Nunca ouve falas tão bonitas. Nunca será tão perfeito, tão verdadeiro. Permaneço assim, caido, por alguns minutos, até o efeito atordoante de sua morte ir se apagando conforme o sangue em minhas veias volta ao seu ritmo normal. Sorrio, com apenas um arrependimento, devia ter gravado isso."

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Enquanto dorme o filho de Urano.

Tenho dificuldade de compreender o tempo em dias nublados. A ausência do sol transforma a cronologia do dia em um momento magnífico e estático. Sei que ainda é manhã, olhei o relógio há pouco e ele marcava 9:12. Chove, uma garoa muito fina porém constante. Não ligo para caminhar na chuva algumas vezes, mas é muito comum que isso apenas aconteça quando calço qualquer sapato furado. Hoje não é diferente, a meia começa a grudar na lateral do meu pé, o que faz a caminhada não ser tão confortável.
Antigamente não ligava para isso. Quando jovem, caminhar na chuva era revigorantemente trágico, era Bach. Toccata & Fugue. Lavava o corpo na noite e em constantes copos de bêbida, inspirando vigor e pó branco. Lembro-me, uma vez, cantar cego enquanto cruzava a cidade com um amigo. Andavamos rápido em um Corsa Classic. O brilho da chuva estava no asfalto como uma cópia perfeita do céu em sua escuridão e estrelas. Cantavamos alto, os pneus cantavam alto, deslizando no universo e nos jogando na lateral de um caminhão em plena Rebouças às 02:00 da manhã de uma quinta-feira. Meus pés tremiam, mas por dentro ainda cantava. Toccata & Fugue em D menor. BWV 565.
Meus pés tremiam como quando desci pela primeira vez em terras desconhecidas. Tremi sozinho, entre as ruas e bares, e hoteis e praças. A chuva veio gelada neste dia, dando um efeito de semi-hipotermia. A vida com tons de romantismo alemão, um modernismo grotesco baudelairiano. Porém os tons são só tons, e com pinceladas propositais. Quando jovem era um péssimo artista.
Ja mais velho pude ouvir a sinfonia da vida, e ela é a 40ª de Mozart. Ela é a alegria falsa que esconde a raiva por trás das palpebras. É a velocidades dos dias. É a fome do tempo. Ouvi o ruido do desprezo divino, senti a independência e como ela roe as beiradas de nossos corpos. Deixei as paixões para trás e amei, constantemente. Amar é um pouco como morrer.
Caminho na chuva, é uma garoa fina e constante. Tão constante que me completa, faz sentir o rosto formigar. Se me perguntar qual foi o ponto alto de minha vida, direi que é este. Esta chuva, este formigamento, este sapato molhado, porque só existe ele e o céu nublado desfaz a cronologia da vida. Meu momento é este, o Prelúdio do Suite nº 1 de Bach.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O pão e a serra

Estamos todos reunidos, antes mesmo do Sol nascer. Toda manhã tomamos café da manhã juntos em uma grande mesa de madeira tosca embaixo de uma grande barraca improvisada formada por uma grande lona laranja sustentada por quatro tronos verticais. Seu Jacir, dono da terra e nosso empregador, dispunha alguns pães sobre a mesa. Manteiga e café suficientes para nos fazer trabalhar com mais vigor. Olho para os rostos que mastigam o início de seus dias. Somos, ao todo, cinco. Francisco, Moura e Donizete já estão comigo desde o começo do serviço, o quarto é um rapaz novo, Miguel, entrou há dois dias no lugar de Tomé.
Dou o último gole em minha pequena xícara de metal branca de pintura descascada e me levanto, caminhando sobre o chão de terra batida que já começa a ficar visível graças aos primeiros raios de luz.
Sou o primeiro a chegar ao caminhão. Sua carreta ainda está cheia de troncos retorcidos e montes de folhas. Às vezes o caminhão não era descarregado de um dia para o outro, trabalho que acabaria por ser feito por nós, ao fim do dia. Levo as mãos à lateral da velha carreta de madeira e pulo para dentro dela, arranjando um espaço entre todo o entulho. Sento-me sobre a madeira molhada pela garoa acumulada. Alguns minutos sozinho até ouvir os passos dos outros quatro. Junto deles o motorista gordo.
Todos se ajeitam nos espaços da carreta, o último a subir é o rapaz novo. Parece pensar que deveria nos respeitar por algum motivo. Todos permanecem quietos, sempre assim. A manhã é o momento mais triste do dia, é o momento onde, após deixar o calor do braço de sua esposa (e o da cama, para os mais sozinhos) se confronta a suave do sonho recém-findado com a aspereza da realidade iniciada. Foi difícil deixar os braços de Marília... Sempre é difícil, ninguém gosta de ter que acordar às quatro da manhã. Ninguém gostar de estar sentado aqui, entre os galhos retorcidos e molhados. Eu não gosto.
O motor grita meio esganiçado, tudo começa a estremecer e um pequeno corpo de fumaça foge do escapamento rouco. Sinto uma textura estranha entre os dedos, ao tentar me apoiar na madeira lateral da carreta. Um pequeno grilo, esmagado. Me limpo em minhas calças.
Então o dia, de fato, começa.

...

Calo-me com café ao acordar, e com o sono pelo resto da manhã. Calo-me para fazer do trabalho o mais produtivo possível. Calo-me ao meio-dia com o álcool que alguém sempre trás. Calo-me sem fechar a boca... Na verdade falo. Todos nós falamos, sentados ao lado do caminhão do qual estendemos uma lona velha para montar uma espécie de cabana onde a cabeça possa descansar do Sol. Entre um gole e outro, uma colherada no arroz frio, porém delicioso. Não faço questão de comer algo quente. O dia já é quente, nossos corpos já estão quentes de trabalho e cachaça. Ainda faltam horas até o fim do expediente e as ferramentas estão jogadas pelo campo. Talvez por isso bebamos.
Serras, machados, enxadas, capacetes, todas entre os grossos galhos de árvores e montes de terra revirada do terreno que limpamos. Dizem que aqui será uma plantação de cana. Ou soja. Sempre dizem algo diferente, mas a única coisa que sei é que se esse terreno todo fosse meu não precisaria nunca mais arrumar as terras dos outros. Plantaria alguns legumes, talvez alface ou beterraba. Tomates, cebola, cenoura. Haveria espaço para um cercado com galinhas e um chiqueiro onde criaria alguma dúzia de porcos gordos. Acordar cedo ainda acordaria, não teria escapatória, com uma terra desse tamanho teria de começar cedo o trabalho. Mas poderia almoçar em casa, poderia ver minha mulher e aliviar a saudade bem no meio do dia. Ou ela poderia me encontrar no meio do pomar e almoçaríamos juntos sob a sombra de uma grande goiabeira. É fácil pensar agora, a garrafa já no final. Volto a prestar atenção à minha volta e alguns riem cantando uma música de melodia fácil. Outros dormem com os capacetes cobrindo os olhos. Eu levanto e, só agora, percebo que o equilíbrio não é o mesmo. Saio da "cabana" e sou atingido em cheio pelo Sol. Quente! Aos poucos os olhos se acostumam à luz. Não lembro onde coloquei meu capacete, então caminho em direção a uma daquelas serras motorizadas.
"Se eu fosse o dono desta terra construiria minha casa bem ali em cima, no ponto mais alto, onde conseguiria enxergar tudo que é meu. E bem na ponta do telhado um galo cata-vento."
Aproximo-me de uma árvore com os galhos já cortados e empilhados ao seu lado. Puxo o fio que faz a serra treme e soltar um bafo quente de gasolina.
"Faria um cercado próximo aos limites da terra. Lá largaria uma galinha na véspera do natal para os garotos das redondezas..."
Dou um passo para trás e procuro um bom ângulo. Não vejo os troncos atrás de mim e bato com os calcanhares sobre eles. O resto dos trabalhadores se levanta rápido quando me escutam gritar. Consigo jogar a serra para o lado e sinto dor na coxa esquerda. A terra revirada é marrom e vermelha.
"Eu sangraria feliz por essa terra."

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

De improviso.

Se a caminhada até o pé da montanha somasse cinco dias, para ele (a quem faltava técnica mas sobrava coragem) durou apenas três. Também não aceitava companhia, foi completamente só. Na escalada, o que realmente lhe importava, se lançou sem pestaneio. Sofreu mais do que deveria, o corpo era todo erguido pela força bruta. Salve o braço forte! Dos sete acampamentos presentes ao longo da subida visitou apenas 4, aqueles que, por desventura do destino, cruzavam com seus momentos de necessidades não-adiáveis.
Chegou rápido a altura onde o oxigênio era escasso, pouco abaixo do cume, e pela primeira vez em uma semana ininterrupta sentiu vontade se sentar. E foi o que fez, sobre uma grande rocha molhada de gelo derretido. Só então percebeu que, a essa altura, tudo que havia a sua volta eram espessas nuvens. Após dias olhando pedras e mãos e neve e pés, o horizonte lhe foi roubado deixando em seu lugar um grande nada opaco. Onde estava a altura e o esforço em meio a isso?
Sentiu os nós dos dedos doerem, o boca seca, o sono acumulado. Devagar desceu da rocha molhada e, tão rápido quando iniciou a subida, começou a descer.
- Subir montanha, que ideia besta!

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Irrenunciabilidade

Não é um fenômeno recente a decadência do homem. Nunca concordei quando, em uma conversa qualquer, escuto um “o mundo está perdido”, “as coisas não são mais como antes”, e todas as possíveis variáveis da mesma ideia raiz. O mundo sempre foi decadente, e diria mais, já foi muito pior do que hoje. Para cada pessoa que chega a constatação que as coisas estão ruins eu vejo mais uma cabeça a se deparar, finalmente, com a realidade, e não a constatar um evento novo.
Em 1096 houve a primeira cruzada extraoficial, mortes por inspiração religiosa. Durante a Baixa Idade Média a peste carcomeu o mundo conhecido, não sendo ela meu foco, mas sim a caçada aos judeus em sua decorrência. A Guerra de Tróia, na Idade do Bronze. A Bomba de Hiroshima. O extermínio dos Maias. O Ataque no Metrô de Tóquio. Para os religiosos, o assassinato de Abel. Para os descrentes o Massacre de My Lai. As mãos já estão sujas de sangue há muito tempo, então por que essa sensação de violência aumentada?
As preocupações fundamentais do homem foram engolidas pelo mundo moderno. A desordem, a violência, a animalidade, tudo foi escondido pelas cortinas da moral social. Da ordem da modernidade, dos tratados, da ética. A morte, aos poucos, foi esquecida, e no lugar de toda a problematização primordial for inserida uma série de novos problemas para direcionar a vida humana.
Faturas, boletos, aluguéis, descontos, faculdade, radares eletrônicos, agrotóxicos, escolas, grades horárias televisivas...
O homem esqueceu sua origem e fez do mundo atual um falso espelho dos últimos 195.000 anos. Ele não é mais um ente de carne, é uma fita de papel revestida de resina termossensível,
No último mês uma mulher se suicidou num dos shoppings mais famosos de São Paulo. Não sei como se chamava e nem a motivação para tal, acho que ninguém sabe, mas ela se atirou do terceiro andar. O estrondo do corpo contra o chão branco de mármore foi enorme. Acredito que o eco deste “fim” fez brandir um acorde antigo na alma de cada pessoa ali presente, e poderia apostar que ninguém, naquele dia, sofreu o pagamento da parcela de sua última compra.

domingo, 31 de julho de 2011

O cemitério de elefantes

Então passei a observar seus olhos e não ouvi mais suas palavras. Eram olhos frágeis. Ao contrário do tom de sua fala seus olhos eram frágeis. Sempre admirei os médicos, é preciso muita coragem para se mostrar sempre digno de confiança, tanto num simples diagnóstico quanto em uma notícia grave. Frio, direto. Nunca conseguiria construir tal normalidade de gestos como eles fazem. Levo os olhos à janela do consultório, o dia está bonito. Conheci, durante a vida, pessoas que preferiam dias nublados e frios, mas sempre fui do tipo que prefere os dias quentes. Os dias quentes de céu limpo. “Ricardo? O senhor está bem? Precisa de algo?” Volto minha atenção ao médico, mas não digo nada. Apenas sacudo a cabeça num sinal positivo e volto a olhar a janela. Gostaria de sair daqui, gostaria de sair agora. Ouço o homem levantar e depois sua mão pousa em meu ombro em um sinal de pesares. Não respondo.

...

Sento-me no banco do fundo. Não é horário de pico. 14:43. O ônibus trafega com poucas pessoas em seu interior. Respiro fundo, cheiro de suor e óleo de motor. Apesar de tudo gosto de caminhar pela cidade durante as tardes, o mundo é mais gentil. Durante a tarde as pessoas se dão licença, cumprimentam-se. Esquecem onde vivem, esquecem quem são. Eu não consigo, hoje, esquecer-me de quem sou. Sentei no último banco do ônibus, pois esse sempre foi meu lugar favorito. Tenho pavor de pessoas olhando minha nuca, pavor irracional. Daqui do fundo consigo seguir o ritmo do veículo, consigo sentir o ritmo das pessoas. Lá fora o sol castiga a brita das construções. Sorrio ao lembrar que, quando criança, o costumo em andar descalço era tão grande que podia andar de pés descalços no sol por horas a fio sem sentir qualquer desconforto. O carro ao lado buzina, no susto solto um disparo de tosse. Só um, como um tiro perdido.

...

Durante a noite o ar fica mais difícil de inspirar. Sento-me à beira do colchão. A tosse seca volta e sinto o canto do peito doer. É difícil pensar em dormir, na verdade é difícil fechar os olhos. Nunca havia tido qualquer receio do escuro, até gostava dele. Lembro-me das palavras do médico, só das primeiras. As palavras duras e os olhos complacentes. Tosse. O quarto estaria totalmente escuro não fossem os feixes de luz amarelos, vindo das ruas, que estampam os pés da cama. Não lembrava desse cômodo ser tão grande. Tateio o criado-mudo em busca de um cigarro. Costumava ter um gato, costumava até o pequeno sumir - tateio - dizem que gatos morrem longe de casa. Talvez seja por esta estranha sensação de auto piedade presente nos lugares conhecidos. Essa negação do inevitável. Bom, concordo com os gatos, não se pode morrer nos braços de uma mãe. Imbecil, não fumo há meses.

...

Peço para o motorista parar no próximo trevo onde a estrada se bifurca. Ele me olha de forma estranha, pode ter sido a primeira vez que alguém para nesse lugar. Me encara, mas para. Agradeço, faço questão de agradecer e desejar uma boa jornada de trabalho. São 10:00 da manhã, imagino. Ou algo próximo disso. Um dia bonito, como o último, poucas nuvens no céu que, neste descampado, fazem enormes sombras flutuarem sobre a plantação de cana à beira da estrada. O difícil de caminhar em um lugar como esse é que não há um ponto específico para se seguir. Escolho um dos caminhos entre os altos colmos e sigo. Enquanto entro mais fundo na plantação ouço mais um ônibus cruzar a estrada, seguido de dois ou três carros. Sorrio. “Arrivée de toujours, qui t’en iras partout.” li isso em algum lugar. O sol começa a castigar o topo da minha cabeça e o suor escorre pelo meu rosto. Dor no canto do peito e tosse, durou a noite toda, claro que não por avanço dos sintomas, mas sim por pura auto sugestão. Não quero controlar nada, não quero controlar o caminho nem o ritmo da minha respiração. Sigo. Uma das grandes sombras flutuantes me alcança e isso ameniza muito a caminhada. Mais um tiro de tosse e, agora, os sons da estrada não passam de ecos sem direção definida, não muito diferente de trovões.

...

Não sei quanto caminhei, o sol parecia estar a pino quando o amontoado de cana-de-açucar ficou para trás e atravessei a cerca de arame farpada. A tosse vem mais forte, acho que sou eu que a forço. Acho que sou eu quem quer senti-la, quero seu gosto. Sinto um cheiro férreo. O caminho de terra batida termina num desfiladeiro de terra e pedras de onde tenho uma boa visão do horizonte. O vento quente, o cheiro férreo.
Lá embaixo, uma pequena casa destelhada protagoniza o meio da paisagem verde. As paredes manchadas insinuam seu propósito. Enquanto caminho em sua direção o cheiro de ferro aumenta e torna-se nauseante. As manchas não estão só nas paredes, estão pelo chão de terra batida, pela grama e pelo ferro fundido da marreta abandonada ao lado da porta. Um cão magro come os restos podres de uma carcaça bovina. Come e rosna quando me aproximo. Paro e o observo mastigar a carne acinzentada. A tosse volta e, desta vez, é ele que me olha. Tiro os sapatos e sinto a terra quente queimar a sola dos meus pés. O ar é quente e o céu continua azul. Sempre fui do tipo que gostava dos dias assim.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Cenotáfio

Ela observa o rosto magro e salpicado de suor frio. Seus tremores haviam passado e agora só restava o corpo cansado, de respiração profunda. O sono como a fuga da dor.
Ela o observa. Havia passado a noite toda ao seu lado. Panos na testa, cobertores, água. Nunca quis ser médica, muito menos enfermeira, moribundos a irritavam, mas nesse caso era diferente.
Foram seis anos de um relacionamento medíocre dentro do esperado, e fabuloso dentro das possibilidades. Dessa forma, pela união matrimonial e aliciados pelo pensamento cristão, esses pequenos sacrifícios se faziam necessários. Foi uma noite comprida, mas finalmente os arrepios cessaram, assim como os gemidos e as alucinações febris.
Passa a mão, devagar, por seus cabelos ensopados. Rosto frio e calmo, talvez bem mais calmo do que deveria ser, talvez uma cura súbita, Não fazia diferença, nunca quis, mesmo, ser médica. Pouco lhe importava técnicas de reanimação, muito menos o conhecimento cogente para empregar diagnósticos. Este era seu marido, e ela havia feito o possível.
Lembrou-se de uma tarde em que o homem, que agora morria em sua frente, disse que a vida era perspectiva. Nunca foi um evento singular, mas uma representação instituída por aqueles inseridos nela.
“ Só somos vivos, na plenitude esperada, quando por meio de condições externas nos lembrados disso. Não é possível sentir-se vivo enquanto confortável no sofá. Medo, dor, tristeza... Isso realça nossa fragilidade e nos faz relembrar da vida. No mais, somos só efeito.”
Sofia o observa. Havia passado a noite toda ao lado de um homem vivo, mas nesse momento, o peito que doía mais era o dela. Sentiu sua própria fragilidade. Levantou-se e foi à sala onde pode, finalmente, deitar-se no sofá e sentir seu corpo pesar de sono. Estava viva e devia deixar seu morto em paz.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Túmulo no monte Cáucaso

O vento está mais frio, hoje. Apesar do céu azul, o vento está frio. Não sei especificar a quanto tempo estou parado aqui. A sombra das árvores cobre meu rosto, posso ver todo o jardim de entrada, a porta, a janela. Escuto certa movimentação dentro da casa, mas a porta permanece fechada. O vento está frio mas o céu muito azul. Entre as folhas dos arbustos, à minha direita, vejo um pedaço da rua. Vazia. Posso observar, também, um pedaço do meu carro, vermelho e brilhante.
Sinto minha mão tremula, acho que é o peso que ela sustenta.Não estou acostumado ao peso do metal. Não estou acostumado ao peso da situação. Sou apenas um homem. O céu está azul turquesa e eu tremo sobre o Cáucaso. Tremo como o homem que encara os olhos do diabo. Porém, hoje a mão que treme, a minha mão, será a castigadora. Hoje, serei eu quem escreverá o epitáfio neste túmulo, entre o mar Negro e o mar Cáspio.
Ouço vozes no interior da casa. O vento sopra mais forte e deita a folhagem que me esconde da rua. Posso ver meu carro, vermelho e brilhante. Sinto um pouco de tristeza quando penso nele queimado, à quilometros daqui. Mas é necessário. Vermelho e brilhante, por um momento sua cor vai escalar o ar em labaredas. É engraçado pensar nas chamas sobre o carro, no fogo em minha mão... é sem dúvida uma oferenda de Prometeu. A justiça dos homens sendo práticada sobre seu cárcere.
Ouço vozes no interior da casa. Penso nela. Imagino seu terror ao ouvir está voz. Imagino seu terror. Sinto nauseas quando a porta se abre.
Ele sai. Não me vê. Está vestindo um uniforme azul turquesa. O céu é azul turquesa. É seu dia. Minha mão treme. Endireito meu dedo junto ao metal e, quando ele passa por mim, tento sair devagar de entre as plantas, debaixo das árvores do jardim. O vento sopra mais gelado, hoje. Piso em um graveto e ele estala alto. Sinto náuseas. Tento ser silêncioso, mas o homem se vira. Tremo. Encaro os olhos do diabo. Minha mão pesa. Ele me encara e pareço ter mil quilos na mão direita. "O que é iss.." ele diz, mas hoje eu sou o castigo. Minha mão está apontada na altura de seus olhos. Cuspo fogo. Penso nela enquanto o vejo cair. sua perna treme e sua camisa já não é azul turquesa. Penso nela e puxo o gatilho mais uma vez. E outra. E outra. Não é mais tão fácil identificar seu rosto, porém seja mais fácil encara-lo. Sinto nojo. Penso nela. Venci o diabo. Não tenho medo, arranquei os olhos do mal. O vento sopra forte e as folhas das árvores cantam. Vejo meu carro e corro até ele. Obrigado Prometeu. Penso nela e sorrio.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Sol de inverno

Os garotos correm pela sala e fazem muito barulho sobre o assoalho de madeira. Eu não digo nada, só tento me cobrir melhor. George e Miguel gritam e correm, mas ninguém diz nada. Faz pouco tempo que amanheceu e minha poltrona já estava arrumada, depois de alcançá-la foi fácil me ajeitar. O inverno começou e se não me cobrir direito meus pés ficarão muito gelados. Tento me cobrir direito.
Quando era criança também costumava brincar muito. Meu pai não gostava da bagunça. Eu gosto. George e Miguel parecem, pelo menos, meia dúzia de crianças juntas, mas seus barulhos me ajudam a manter a atenção. Às vezes, quando o dia fica silencioso demais, não sei se estou dormindo ou acordado. Esqueço como é se sentir acordado.
O sol esquenta minha nuca. As cortinas devem estar abertas. No inverno é bom, aconchegante.
Os garotos correm na sala. Derrubam alguma coisa.
"Shhhhh! Não faz barulho!" diz Miguel "a mãe disse pra gente não incomoda o vô."
"Não to incomodando o vô, eu só derrubei aqui, ó!" sussurra George.
"Para de fazer barulho se não vo conta pra a mãe!" Miguel responde.
Não digo nada.
A correria recomeça, mas, aos poucos, se distancia. Fica distante e se dissipa no espaço aberto do quintal.
Quando eu era jovem fui à praia com uma garota. Tomamos algumas bebidas e caminhamos na areia durante muitas horas da tarde. O sol também esquentava minha nuca. Éramos jovens e ela tinha os olhos azuis. Não, eram castanhos, mas o mar era azul, e o céu era azul, e eles eram longos e desapareciam na vista. Lá no fundo tinha um navio ancorado, parecia de brinquedo e eu fiquei muito tempo olhando para ele. Não me lembro muito bem de como é o azul.
Quando era jovem costumava observar o mundo em silêncio, hoje eu não o enxergo mais. Hoje sinto que é o mundo que, ruidosamente, me observa.
George e Miguel correm sobre o assoalho de madeira. Parecem, pelo menos, meia dúzia de crianças. Dou um pequeno pulo na poltrona e sinto frio nos pés, novamente.
Não digo nada. Gosto do som deles.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Resurrectione

Certa manhã, ao sair para o trabalho, resolvi não calçar os sapatos.
Certa manhã não sinalizei para o ônibus, ao invés disso fiz a curva à esquerda no quarteirão e segui reto, acompanhando a sombra maximizada de minha cabeça na calçada.
Segui direto até a paisagem se dissipar, dando lugar a um deserto de areia vermelha e aroma férrico.
Sentia o mundo entre os dedos dos pés e , aos poucos, me colorir de vermelho as raizes do corpo.
Tornei-me deserto e me batizei Nada.
Por quinze dias o sol rachou o solo de minha pele para depois, com fulgor gritante, jorrar sua tempestade chorosa.
Da coluna ereta que antes me era a espinha ergueu-se a haste aguda de um cravo que, em sua primeira tira de pétala vermelha, soprou os pulmões secos do deserto, enchendo a sarjeta da rua Laboriosa de perfume morno.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Culto

Da janela todo som é sussurrado
de se forçar à ouvir
e adivinhar sugestões.
Entre alarmes, sirenes
freadas, estilhaços
tudo é suspiro
calado na noite.
Da janela, a rua é presépio
de data deslocada.
E pela distância,
e pela altura,
sinto-me sereno
como um deus saciado.

quinta-feira, 17 de março de 2011

John Donne

"Nenhum homem é uma ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do Continente, uma parte da terra. Se um Torrão carregado pelo Mar deixa menor a Europa, como se todo Promontório fosse, ou a Herdada de um amigo seu, ou até mesmo a sua própria, também a morte de um único homem me diminui, porque Eu pertenço à Humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti."
John Donne

sexta-feira, 4 de março de 2011

Estilingue

Todos os dias, ao meio-dia, quando saio para trabalhar, passo em frente a uma escola de ensino fundamental. Uma escola pública, daquelas que leva o nome de alguma figura importante como homenagem.
Ao meio dia, quando saio, é também quando elas chegam. Dezenas crianças de mochilas nas costas. Correria, gritos, aventura. Diria que são sempre as mesmas, mas não posso dizer com certeza, para mim nessa idade todas parecem irmãos e irmãs de extrema semelhança. Porém, consigo identificar a recorrência dos rostos que as acompanham; mães, pais, tios, tias, irmãos... Conversam entre si enquanto os pequenos saem em disparada entre os transeuntes. Às vezes brigando, às vezes rindo. Um garoto tenta demonstrar força para os amigos, uma garota anda séria, tentando se passar por mais velha. Não importa o ato, não importa a criança, há um elemento em comum entre todas: o barulho.
Mas nunca foi esse o som que me perturbou, e sim o som proveniente daqueles rostos distintos. O som dos acompanhantes. São gritos para apressar, gritos para oprimir, gritos por gritar. Não havia atenção para com elas, não havia carinho, eram gritos... Berros, ordens. Talvez lhes atrapalhassem a conversa entre os adultos, talvez os passos curtos das crianças lhes fizessem perder o programa de TV favorito.
Um dia, enquanto caminhava entre as crianças, fui bombardeado pelos gritos de contenção. Mas em meio a todo o concerto de rispidez uma melodia de desespero rachou a cena e transformou o momento em silêncio. Não houve mais correria, as risadas cessaram, as mães e pais e tios e irmãos tremeram. Não houve pensamento ou reação nos três primeiros segundos. A mochilinha voou mais adiante, assim como o corpinho miúdo. O carro, ainda de motor ligado, fazia subir um forte cheio de pneu queimado. Neste dia meu atrasado no trabalho teve o tempo de uma oração.

A morte de uma criança é como a morte de um passarinho, silenciosa e inocente.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Ideofobia

Confesso ser avesso às ideologias. Sustento meu apoio as ideias (que podem ser constituídos de coisa qualquer), mas não posso aceitar o idealogismo.Talvez considere todo aquele que seja utópico, mas não o combativo. Vejo garotos levantando bandeiras partidárias, políticas, econômicas e ouço suas necessidades de combate. Vejo-os posicionarem-se frente ao espelho e ajeitarem suas boinas militares de modo que seu "símbolo" esteja na mira de quem os olhar nos olhos. Vejo-os morderem os lábios na ansiedade de serem injetados a um mundo novo, algo sonhado, mas não seriam meros participantes de contexto, o sonho inclui a parada de boas vindas ao "libertador".

Como dizia antes, não sou um homem que despreza as idéias, sou apaixonado pelas ideias, apaixonado exatamente por seu espírito de confidencialismo verdadeiro. Um homem pode esculpir a imagem de um mundo ideal e, mais que depressa, odiar.

Criar ideais não significa segui-los, é multifacetar o mundo, mas aceitar o ideologismo é abraçar a idéia de outrem.

Ontem um conhecido vestiu sua bandeira vermelha e, por alguns minutos, fez-se a própria figura da revolução para todos os burgueses que o observavam enquanto comprava um capuccino numa cafeteria de shopping.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Manobra

Demarco meu espaço só com os olhos.
Hexágono de plumas.
territorialismo de silêncio

- Senhores, vislumbrem o faisão
recém degolado. Senhores,
compartilhem o sangue em suas mâos.

Por meu pecado escolha a omissão,
a omissão dos mudos que,
por imposição maior,
calam o grito ainda no estômago.

- Senhores, em minhas mãos
carrego o pó. Abdico a ostentação!
Lhes entrego os brios que me cabiam,
pois foi essa ufania que fez destas penas
a nossa divisa.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

São Paulo

São Paulo é um emaranhado de metal vibrante.
É um castelo de concreto e luxúria. O sonho que perdeu o controle.
Na calçada os homens suam e olham as mulheres. Suam e olham pois não há espaço para o desejo.
A vida rola lenta. A vida, na verdade, não rola. é estática. O homem se movimenta por intermédio da roda e, aos poucos, vai se tornando a própria roda.
São as pernas humanas que movimentam os carros, os ônibus. A cidade fez dos homens e mulheres as locomotivas modernas. Expelimos fumaça pálida, rugimos o motor de nossos pulmões. Corremos sobre o emaranhado do metal vibrante.
Moro em São Paulo já faz um tempo considerável e me nego a ser uma locomotiva, porém, ando entre trilhos e um desvio de atenção pode me levar uma perna ou mais.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

1:12

1:12 da manhã
o asfalto molhado é rasgado por pneus,
bêbados cantam alto, em irmandade,
enquanto a água se empoça em velhos boeiros.
A cidade pulsa morimbunda, em estado hipnótico.
No ninho, os suores expulsam os lençois,
o calor inflama a pele,
e eu não durmo,
vigio o sono da minha Vênus
para que no dia seguinte possa haver Sol.