quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Carta aos cães



Dedico essa confissão aos cães (por vezes chamados “companheiros” ou até mesmo “amigos”).
Escrevo a vocês para informar a falta que a ponta de meus dedos me fazem, pontas essas abocanhadas enquanto lhes afagava.
Temo não ter sido prevenido no que diz respeito a seus instintos falhos e distúrbios de comportamento de matilha, portanto, uso esta carta como reforço à minha memória e diagnóstico de seus latidos esganiçados.
Reitero também meu recém apoio ao uso de métodos pouco ortodoxos no combate à hidrofobia e transtornos de fidelidade canídea, sendo esses o isolamento público e, em último caso, sacrifício.
Por fim, atento ao autoconhecimento como moderador de personalidade, vista suas recorrentes identificações aos lobos quando, na realidade, não passam de cães sem bando.
 Desejo lhes estender a mão para que abocanhem-na, engasguem com a secura de minha pele e morram na sarjeta da avenida principal, deixando à vista seus corpos de cão inchados e sós.

Cordialmente.
Um cão.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Amphibia

Eram como anfíbios. Misturados entre lodo e spirodelas
Arfavam.
Asco. Antes sólo seco e claro.
Mas a noite vem, e a chuva vem.
Cubro os olhos para não enxergar o movimento.
No escuro, entre o lodo e as plantas, borbulham ainda os suspiros e movimentos
do imoral oculto,
o prazer repelente.
Reflexos nas peles pálidas, anfíbeas
que sussurram gemidos.
E a água, ondulante, insiste em tocar meus tornozelos.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A poesia como exortação de virtudes na Grécia Antiga

1. Poesia Didática
“Compus uma tragédia cheia de Ares. (...) É assim que os poetas devem proceder. Observa como desde a origem os mais nobres poetas se tornaram úteis: Orfeu, por exemplo, ensinou-nos os mistérios e a afastarmo-nos das mortes, Museu as curas das doenças e os oráculos, e Hesíodo os trabalhos da terra, as estações dos frutos, a agricultura. E o divino Homero donde recebeu honra e glória senão de que ensinou coisas úteis como linhas de combate, virtude militar, armamentos de homens? (1020 e ss. Tradução de Américo C. Ramalho, edição 70)”. Assim Aristófanes descreve as falas de Ésquilo em um duelo imaginário com Eurípides em sua peça “As Rãs”. Observamos que se trata de uma batalha que almeja identificar a supremacia, de um ou de outro, na poesia trágica. Desta forma, por que, nos argumentos de Ésquilo, é tão valorizada a característica didática da poesia?
Para entender seu motivo devemos voltar no tempo e, para isso, me utilizarei nas próximas linhas do texto “A revolução da escrita na Grécia antiga e suas consequências culturais” de Eric A. Havelock.
Importante apontarmos para o momento iletrado da Grécia. Conforme diz Havelock, muitas das obras que se acreditavam serem criadas já com o advento da escrita parecem ter sido, na verdade, criadas por meio da oralidade, como poesia para ser cantada, sendo imortalizada com a escrita anos depois. Obras essas como a própria Ilíada ou a Odisseia, de Homero.
Assim, devemos entender que, falando de uma poesia cantada inclui-se a musicalidades, o ato de recitar e, o mais importante de tudo, no caso que tratamos, o público. “Segundo este modo de ver, seu didatismo não foi obra de um temperamento pessoal, mas resposta a expectativas pertinentes ao papel de um poeta que tinha por tarefa, entre outras coisas, recomendar e preservar o ethos da sociedade oral”. Portanto, Havelock neste trecho esclarece que uma das tarefas do poeta, tarefa essa esperada pelo público, era de preservar o ethos, criar um senso social ao público por meio de uma poesia que fosse, entre outras coisas, didática, exortadora das virtudes do povo. Se pensarmos neste dialogismo poeta X público causado pela poesia cantada, percebemos a importância que existe na criação de uma temática que faça sentido e aproxime todo que a ouvem. Além da pura motivação técnica, devemos atentar também, à motivação cívica. Se falarmos de uma sociedade iletrada, falamos de um povo que não tem, de modo documental, transcrições que ensinem formas de conduta a serem seguidas, e é aí que a poesia tem papel importante. Dificilmente se poderia ouvir um discurso que pretenda educar um povo e, apenas assim, fazer com que todos os cidadãos memorizassem e transmitissem essas lições aos próximos, mas por meio da poesia (com seus versos, musica e teor de entretenimento) essa tarefa torna-se muito mais prazerosa e fácil de ser cumprida. Esse argumento pode ser embasado no que diz Havelock: “[...] a poesia grega está imune a essa espécie de idealização privada, Ela é, em sua forma e em sua substância, “orientada para o outro”, não num sentido abstrato, mas no sentido de que o outro é uma audiência, um “público” externo à pessoa que fala: um público muitas vezes simbolizado, no vocativo, como um indivíduo, mas sempre percebido na poesia. Isto se dava porque a poesia criou-se primeiro em sociedade de comunicação oral, as quais tinham também essa “orientação para o outro”.
E é claro que temos muitos exemplos que demonstram a importância que os gregos davam a esse caráter didático da poesia além de Aristófanes, como, por exemplo, Platão que no livro X de sua “República”, em uma fala de Sócrates diz: “esse poeta educou a Hélade e que é digno aprender com ele o que concerne à administração e à educação dos assuntos humanos e viver tendo organizado sua vida conforme esse poeta (606e)”. Mas não precisamos nos manter apenas no plano dos discursos sobre “aqueles que ensinavam”, mas podemos utilizar de forma mais prática os “obras” de poetas que agiam exatamente desta forma “educadora”, como por exemplo Calino que em uma de suas Elegias diz o seguinte:



“I
Até quando essa inércia? Quando, ó jovens,
valor tereis? De ignávia, ante os vizinhos,
pois não corais? Dir-se-ia que a paz reina,
não que a esta terra toda a guerra ocupa.
..................................................................
Morrendo, o bravo atire o último golpe.
Combater pela pátria, esposa e filhos
honra e nobreza traz. Quando o fiarem
as Moiras é que a morte há de colher-te.
Vá, pois, cada um brandindo a lança e, forte
o coração do escudo protegido,
seu posto ocupe ao rebentar da pugna,
já que ninguém do termo certo escapa,
embora seja de Imortais progênie.
O que, fugindo à luta e aos dardos, volta,
muita vez é no lar que o fim depara,
sem que o estime, porém, nem chore o povo.
Mas o estrênuo varão, pobres e ricos,
qual semideus, enquanto vivo, o encaram
e, saudosos, o exício lhe pranteiam,
lembrando-lhes excelsa e rija torre,
pois, sendo um homem só, valeu por muitos.”


Nessa elegia é clara a motivação didática de Calino que, por meio de versos, ensina o valor militar aos jovens, dizendo a eles o quão digno e bem visto é lutar pelo seu povo e a glória que morrer em combate pode trazer. Da mesma forma é vista essa educação militar e exaltação da batalha e da importância da proteção à pátria na Elegia de Tirteu que diz em um trecho:


“VI
É belo que, lidando pela pátria,
tombe o valente na primeira fila;
mas seu berço deixar e os ricos campos
e, mendigo, ir errar com o pai longevo,
a cara mãe, a esposa e os tenros filhos,
das penas há de ser-lhe esta a mais dura.
Odioso ele será por onde o levem
a penúria e a indigência aborrecida.
Aviltando-lhe a raça e o nobre vulto,
desonra e pecha de covarde o seguem.
Se apreço não lhe dão, mas só desdouro
O êxul depara e quantos dele nascem,
por esta terra com vamor lutemos,
em defesa dos filhos dando a vida.
Cerrando as filas, combatei, mancebos,
deslembrados da fuga e pavor torpe,
e, investindo o inimigo, tende n’alma
desprezo pela vida e heróico assomo.
Não fujais, na corrida atrás deixando
os velhos, cujos membros são mais lerdos.
Pois é vergonha ver-se, antes dos jovens,
jazer, prostrado nas primeiras filas,
um bravo, de alvas cãs, barba grisalha,
exalando, por terra, a nobre vida,
às mãos, nu, tendo os genitais sangrentos:
torpeza e para vista quadro horrendo!
Nada destoa ao moço, ao qual adorna,
brilhante, a flor da juventude amável.
Vivo, olhado é dos mais, caro às mulheres,
e sempre belo, na vanguarda morto.
As plantas, pois, cada um firme no solo,
morda os lábios e, impávido, resita.”

Ambos se utilizam de elegias para exortar aos deveres de se batalhar em nome de sua pátria e da glória de se morrer enquanto serve à luta de seu povo, e para alcançar o efeito de exortação de virtudes necessário utilizam os exemplos históricos, como a guerra do Peloponeso na elegia acima, de Tirteu.
Porém, e depois da concretização da escrita dentro da sociedade grega, como ficou essa cultura do “ensinar pela poesia”? Havelock nos diz: “À medida que, por toda a parte, no mundo grego aumentava a difusão da competência na leitura, com certeza decrescia a necessidade do imperativo de elaborar registros históricos em forma de poesia”, ou seja, a utilização da poesia como forma de registro histórico e forma de educar é inversamente proporcional à difusão da leitura, mas não o suficiente para abolir a prática. Os próprios textos de Aristófanes e Platão demonstram essa essência viva, além do fato de que não se pode deixar de compreender as tragédias ou comédias gregas, por exemplo, como modos alternativos de se suscitar um conhecimento especifico no público (leitor ou não), seja este conhecimento qual for, fazendo com que o grande ganho real da introdução da escrita na Grécia seja, além do simples relato histórico documental, o surgimento de uma ferramenta que facilitou uma literatura mais intima ao seu autor tornando, a partir daí, a poesia algo mais pessoal do que era antes.

2. Bibliografia

HAVELOCK, Eric A. “A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais”. Tradução de Ordep José Serra. Editora Unesp. p.11 – 39.

Platão. Livro X. A República.

Aristófanes. As Rãs.

Calino. Elegias

Tirteu. Elegias

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Deslumbre, ou A Maldição do Touro Cretense

"Já havia assistido a este vídeo tantas vezes que se fizera possível saber todos os detalhes do que se passaria nele, e qual era, exatamente, a ordem cronológica das ações. Apesar do audio estar comprometido pelas limitações tecnológicas de meu celular (mescladas à dificuldade da filmagem disfarçada), foram tantas as repetições que todo o dialogo era muito claro, para mim.
Antes de passar a assistir repetidas vezes ao vídeo em minha casa, havia visto a peça duas vezes ao vivo, a primeira por acaso e a segunda para o exato registro do espetáculo. Era uma representação de Otelo. Nenhuma companhia famosa, na verdade paguei bem pouco para assisti-la, e não fui à arena com muitas expectativas. A verdade é que minha falta de fé na encenação e montagem da peça se provou real, não foi nada espetacular. Na verdade era mediocre, talvez muito abaixo disso, com exceção de Desdêmona.
Ao vê-la pisar no palco senti certo palpitar. Não que fosse uma mulher incrivelmente bonita ou de sexualidade exacerbada. Cabelos escuros e compridos, presos num rabo de cavalo (que julgo que fora feito com base no que deveria ser um penteado ‘de época’), estatura mediana, corpo magro (mas não desprovido de curvas). Mãos pequenas. Fazia força para interagir com os outros atores e, por mais falta de talento que tivesse para o que se propunha a fazer (ou seja, atuar), sua presença no palco e suas falas agiam de forma hipnotizante para mim. O enredo seguia e meu fascinio aumentava. Me preocupava o ciúmes de Otelo, me penalizava as intrigas de Iago, me amedrontava o punhal do mouro de Veneza.
Então, a cena final! O suor brotava em minha testa, o corpo queimava com um calor misto de medo e agonia, sabia como iria terminar. Sabia e sofria por isso.

“ Ninguém; eu mesma. Adeus! Faça que sempre de mim se lembre meu querido esposo.”

O corpo da garota caido ao chão. Nas maçãs dos rostos ainda escorriam as lágrimas. Compartilhei as lágrimas. Fiquei sentado em minha poltrona até todo o público (e elenco) deixar o local, só então, após retomar o folego, pude caminhar para a rua. Sentia êxtase.
No dia seguinte foi novamente à apresentação, foi quando fiz o video.

Fazem dois meses que o video foi gravado e, desde então, o assisto todas as noites. Ainda sinto paixão. Ainda amo aquelas lágrimas. “Ninguem; eu mesma...” Mas a distância faz o desejo clamar por mais. “Faça que sempre de mim se lembre....” Minhas mãos não tremem como antes. Os soluços saem sempre no mesmo entervalo de fala. Não, preciso de mais! Preciso ve-la novamente. Sinto algo se apagando em mim e não quero que isso aconteça, não agora!

Theatro Municipal. Theatro São Paulo. Roosvelt. Centros Culturais. Teatros de Arena. Procuro em todos os locais possíveis pela companhia da qual participava minha jovem Desdêmona. Maurício me disse para deixar disso, que ao invés de utilizar todo esse empenho para encontra-la, devia procurar alguma forma de tratamento, pois isso que sinto beira a insanidade. Não me importo com a insanidade, dela todos devem ter uma certa dose. Por que chorar por uma vitória em um campeonato esportivo e não por um êxtase espiritual? Creio que tenha sido algo espiritual. Nunca fui à igreja, não sei como funciona, mas pelo pouco que pude absorver disso durante minha vida, tudo me faz crer que possa ser semelhante. Ouvi as trombetas que se estendem pelo portão do paraíso. A mão que apertava o pescoço da garota era movida pela vontade divina inserida no mouro. Eu vi. Eu senti. Porém, não é mais pela visão de minha pequena que os tremores vêm, é por sua ausência. Pela ausência da paixão, do êxtase. Apesar de tudo isso Maurício me olha com olhos analíticos e desconversa, e se venço no assunto ele me ataca.
“Já disse que está doente.”

Devo assumir que algumas vezes consigo pensar com mais clareza e percebo uma selvageria desmedida em minhas vontades. Não me vejo diferente de um viciado em cocaína, um alcoólatra ou qualquer cidadão preso em uma necessidade crescente de busca por uma quantidade maior de seu objeto de vício. Já faz um tempo considerável que minha produtividade no trabalho despencou de maneira gritante, perdi muito de minha vida social. Na verdade deixei de sair com antigos amigos para estar em casa me “drogando” com o vídeo (ou simplesmente com a lembrança, que a cada dia cria uma coloração mais opaca em minha memória) e quando não fico em casa percebo que a alteração de personalidade que sofri por conta destes últimos acontecimentos afastaram as pessoas de mim. Quem é que se sente a vontade ao lado de um viciado lunático que beira a sociopatia? E é assim que me enxergo nestes momentos de clareza, como um louco. Um doente. Sento-me no sofá e tento tomar uma cerveja, fumar um cigarro. Encontrar novamente os velhos e prazerosos hábitos, mas o tempo traz a abstinência, começo a pensar na garota e, assim como a ânsia do vício havia ido embora, ela volta. Apago o cigarro, tomo o resto da cerveja e saio de casa. Procurarei Desdêmona só desta vez, assim como tantas últimas vezes. A clareza se foi.

Passei a tarde toda ouvindo Vivaldi. É um dos poucos músicos clássicos que conheço então acho que devo, por respeito, ouvi-lo sempre que possível. Me acalma, apesar de não conseguir compreender, em sua totalidade, como funciona a música clássica. Percebo apenas os loopings. Da dádiva ao terror. Só. Mas hoje me mantive dentro da dádiva. Desdêmona se chama Michelle. Conheci-a em uma das minhas incessantes buscas. Já fazem algumas semanas. Me disse que já não interpreta mais, arranjou um bom trabalho como auxiliar admisnistrativa de uma empresa de seguros de um tio, o teatro era apenas uma distração, uma forma de extravasar e vivenciar um pouco a arte. “Tenho muito de atriz dentro de mim, mas não tenho mais muito tempo para isso”, ela disse, “apesar de todos os elogios que recebi. Já te contei que fui chamada para um teste em uma mini-série de tv? Fui uma das 5 finalistas. Aposto que a escolhida foi por indicação pessoal”. Não fiquei feliz em saber do fim de sua carreira, mas não pude ignorar o fato de ser ela o objeto de meu prazer durante tanto tempo e tive de continuar a vê-la.
Passei o dia ouvindo Vivaldi, e no almoço comi um talharim na manteiga. São 4 horas agora, ainda faltam 3 horas até encontra-la. Resolvo já começar a me arrumar. Creio que hoje será uma boa noite, talvez consiga chegar a algum lugar, afinal estamos nos dendo bem. Procuro uma roupa no armário, algo que seja apropriado. Suo frio e já não sei identificar o motivo de meus tremores.

Sento-me no tapete com as costas apoiadas no sofá. Ela dança de meias pela sala, na mão um copo de vinho.
“O que achou da comida?” Digo. Não a chamo de Michelle, não condiz com sua feição. “Ótima! Foi uma noite muito legal! E.. e eu estou tão bêbada!”
Sorri. Também estou bêbado. Junto com a comida foram duas garrafas de vinho, e mais duas desde que chegamos à sua casa. Seu pequeno corpo continua dançando em minha frente enquanto derrama pequenos pingos de vinho sobre o tapete bege, manchando-o.
“Por que parou de atuar?”
Tomo todo o resto da bebida que tinha em minha mão, ela responde sem sessar os passos.
“Já te disse, porque eu não tinha tempo, alias...”
Não aguento.
“Devia ter continuado...”
“Também me achava uma otima atriz!?”
“Acho que deveria recomeçar”
Ela sorri fazendo uma careta, aproxima-se e senta de frente em meu colo.
“Não podemos falar de outra coisa?”
“Ainda sabe as falas de Otelo?”
“Não, acho que não lembro muito bem....”
“Claro que sabe, Desdêmona! Sabe!”
Ela se assusta dando um pequeno pulo em meu colo, depois diz com voz seca.
“Me chamo Michelle!”
“Interpreta! Pela última vez, só para mim!”
“Não!” ela se levanta “Chega, eu não vou fazer isso, não quero falar merda nenhuma seu lunático do caralho!”
Me levanto, também, e sinto que estou gritando. Ela dá alguns passos para trás, cambaleante, derrubando a taça de vinho, mas logo eu a alcanço fazendo os dois corpos cairem no chão. A queda é silenciada pelo tapete felpudo, assim como sua voz pelas minhas mãos que apertam seu pescoço.
“Fale! Vai, eu sei que você sabe! Fale!”
As lágrimas começam a escorrer por seus olhos mas o grito é interrompido pelo peso dos meus punhos. Ela arranha meus braços. Não sinto. Continuo gritando.

“Sai, prostituta infame! Vais chorá-lo na minha frente?”

Sinto o terror em seus olhos e sua boca começa a se mover. Afrouxo os dedos e posso ouvi-la, quase como em um suspiro.

“O meu senhor! Bani-me de vossa vista, mas deixai-me viva.”

Meu coração acelera. Sinto como se todos os poros de meu corpo se abrissem e absorvessem o mundo a minha volta. As trombetas soam. As palavras de Desdêmona soam. Minhas mãos são guiadas pela vontade divina. Choro. Minhas lágrimas caem sobre seu peito, mas não deixo de tomar, para mim, as falas de Otelo. A cada resposta sinto minha alma estremecer. Fecho os olhos. Ela diz, baixo e sufocada.

“Ninguém; eu mesma. Adeus! Faça que sempre de mim se lembre meu querido esposo.”

Suas últimas palavras são mais baixas, mais sofridas, e então paro de ouvi-la. Sinto dores nas mãos e as abro, caindo de costa no chão. Dádiva. Sinto o tremor pelo meu corpo. Sinto paixão, amor. Me sinto completo. Nunca ouve falas tão bonitas. Nunca será tão perfeito, tão verdadeiro. Permaneço assim, caido, por alguns minutos, até o efeito atordoante de sua morte ir se apagando conforme o sangue em minhas veias volta ao seu ritmo normal. Sorrio, com apenas um arrependimento, devia ter gravado isso."

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Enquanto dorme o filho de Urano.

Tenho dificuldade de compreender o tempo em dias nublados. A ausência do sol transforma a cronologia do dia em um momento magnífico e estático. Sei que ainda é manhã, olhei o relógio há pouco e ele marcava 9:12. Chove, uma garoa muito fina porém constante. Não ligo para caminhar na chuva algumas vezes, mas é muito comum que isso apenas aconteça quando calço qualquer sapato furado. Hoje não é diferente, a meia começa a grudar na lateral do meu pé, o que faz a caminhada não ser tão confortável.
Antigamente não ligava para isso. Quando jovem, caminhar na chuva era revigorantemente trágico, era Bach. Toccata & Fugue. Lavava o corpo na noite e em constantes copos de bêbida, inspirando vigor e pó branco. Lembro-me, uma vez, cantar cego enquanto cruzava a cidade com um amigo. Andavamos rápido em um Corsa Classic. O brilho da chuva estava no asfalto como uma cópia perfeita do céu em sua escuridão e estrelas. Cantavamos alto, os pneus cantavam alto, deslizando no universo e nos jogando na lateral de um caminhão em plena Rebouças às 02:00 da manhã de uma quinta-feira. Meus pés tremiam, mas por dentro ainda cantava. Toccata & Fugue em D menor. BWV 565.
Meus pés tremiam como quando desci pela primeira vez em terras desconhecidas. Tremi sozinho, entre as ruas e bares, e hoteis e praças. A chuva veio gelada neste dia, dando um efeito de semi-hipotermia. A vida com tons de romantismo alemão, um modernismo grotesco baudelairiano. Porém os tons são só tons, e com pinceladas propositais. Quando jovem era um péssimo artista.
Ja mais velho pude ouvir a sinfonia da vida, e ela é a 40ª de Mozart. Ela é a alegria falsa que esconde a raiva por trás das palpebras. É a velocidades dos dias. É a fome do tempo. Ouvi o ruido do desprezo divino, senti a independência e como ela roe as beiradas de nossos corpos. Deixei as paixões para trás e amei, constantemente. Amar é um pouco como morrer.
Caminho na chuva, é uma garoa fina e constante. Tão constante que me completa, faz sentir o rosto formigar. Se me perguntar qual foi o ponto alto de minha vida, direi que é este. Esta chuva, este formigamento, este sapato molhado, porque só existe ele e o céu nublado desfaz a cronologia da vida. Meu momento é este, o Prelúdio do Suite nº 1 de Bach.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O pão e a serra

Estamos todos reunidos, antes mesmo do Sol nascer. Toda manhã tomamos café da manhã juntos em uma grande mesa de madeira tosca embaixo de uma grande barraca improvisada formada por uma grande lona laranja sustentada por quatro tronos verticais. Seu Jacir, dono da terra e nosso empregador, dispunha alguns pães sobre a mesa. Manteiga e café suficientes para nos fazer trabalhar com mais vigor. Olho para os rostos que mastigam o início de seus dias. Somos, ao todo, cinco. Francisco, Moura e Donizete já estão comigo desde o começo do serviço, o quarto é um rapaz novo, Miguel, entrou há dois dias no lugar de Tomé.
Dou o último gole em minha pequena xícara de metal branca de pintura descascada e me levanto, caminhando sobre o chão de terra batida que já começa a ficar visível graças aos primeiros raios de luz.
Sou o primeiro a chegar ao caminhão. Sua carreta ainda está cheia de troncos retorcidos e montes de folhas. Às vezes o caminhão não era descarregado de um dia para o outro, trabalho que acabaria por ser feito por nós, ao fim do dia. Levo as mãos à lateral da velha carreta de madeira e pulo para dentro dela, arranjando um espaço entre todo o entulho. Sento-me sobre a madeira molhada pela garoa acumulada. Alguns minutos sozinho até ouvir os passos dos outros quatro. Junto deles o motorista gordo.
Todos se ajeitam nos espaços da carreta, o último a subir é o rapaz novo. Parece pensar que deveria nos respeitar por algum motivo. Todos permanecem quietos, sempre assim. A manhã é o momento mais triste do dia, é o momento onde, após deixar o calor do braço de sua esposa (e o da cama, para os mais sozinhos) se confronta a suave do sonho recém-findado com a aspereza da realidade iniciada. Foi difícil deixar os braços de Marília... Sempre é difícil, ninguém gosta de ter que acordar às quatro da manhã. Ninguém gostar de estar sentado aqui, entre os galhos retorcidos e molhados. Eu não gosto.
O motor grita meio esganiçado, tudo começa a estremecer e um pequeno corpo de fumaça foge do escapamento rouco. Sinto uma textura estranha entre os dedos, ao tentar me apoiar na madeira lateral da carreta. Um pequeno grilo, esmagado. Me limpo em minhas calças.
Então o dia, de fato, começa.

...

Calo-me com café ao acordar, e com o sono pelo resto da manhã. Calo-me para fazer do trabalho o mais produtivo possível. Calo-me ao meio-dia com o álcool que alguém sempre trás. Calo-me sem fechar a boca... Na verdade falo. Todos nós falamos, sentados ao lado do caminhão do qual estendemos uma lona velha para montar uma espécie de cabana onde a cabeça possa descansar do Sol. Entre um gole e outro, uma colherada no arroz frio, porém delicioso. Não faço questão de comer algo quente. O dia já é quente, nossos corpos já estão quentes de trabalho e cachaça. Ainda faltam horas até o fim do expediente e as ferramentas estão jogadas pelo campo. Talvez por isso bebamos.
Serras, machados, enxadas, capacetes, todas entre os grossos galhos de árvores e montes de terra revirada do terreno que limpamos. Dizem que aqui será uma plantação de cana. Ou soja. Sempre dizem algo diferente, mas a única coisa que sei é que se esse terreno todo fosse meu não precisaria nunca mais arrumar as terras dos outros. Plantaria alguns legumes, talvez alface ou beterraba. Tomates, cebola, cenoura. Haveria espaço para um cercado com galinhas e um chiqueiro onde criaria alguma dúzia de porcos gordos. Acordar cedo ainda acordaria, não teria escapatória, com uma terra desse tamanho teria de começar cedo o trabalho. Mas poderia almoçar em casa, poderia ver minha mulher e aliviar a saudade bem no meio do dia. Ou ela poderia me encontrar no meio do pomar e almoçaríamos juntos sob a sombra de uma grande goiabeira. É fácil pensar agora, a garrafa já no final. Volto a prestar atenção à minha volta e alguns riem cantando uma música de melodia fácil. Outros dormem com os capacetes cobrindo os olhos. Eu levanto e, só agora, percebo que o equilíbrio não é o mesmo. Saio da "cabana" e sou atingido em cheio pelo Sol. Quente! Aos poucos os olhos se acostumam à luz. Não lembro onde coloquei meu capacete, então caminho em direção a uma daquelas serras motorizadas.
"Se eu fosse o dono desta terra construiria minha casa bem ali em cima, no ponto mais alto, onde conseguiria enxergar tudo que é meu. E bem na ponta do telhado um galo cata-vento."
Aproximo-me de uma árvore com os galhos já cortados e empilhados ao seu lado. Puxo o fio que faz a serra treme e soltar um bafo quente de gasolina.
"Faria um cercado próximo aos limites da terra. Lá largaria uma galinha na véspera do natal para os garotos das redondezas..."
Dou um passo para trás e procuro um bom ângulo. Não vejo os troncos atrás de mim e bato com os calcanhares sobre eles. O resto dos trabalhadores se levanta rápido quando me escutam gritar. Consigo jogar a serra para o lado e sinto dor na coxa esquerda. A terra revirada é marrom e vermelha.
"Eu sangraria feliz por essa terra."

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

De improviso.

Se a caminhada até o pé da montanha somasse cinco dias, para ele (a quem faltava técnica mas sobrava coragem) durou apenas três. Também não aceitava companhia, foi completamente só. Na escalada, o que realmente lhe importava, se lançou sem pestaneio. Sofreu mais do que deveria, o corpo era todo erguido pela força bruta. Salve o braço forte! Dos sete acampamentos presentes ao longo da subida visitou apenas 4, aqueles que, por desventura do destino, cruzavam com seus momentos de necessidades não-adiáveis.
Chegou rápido a altura onde o oxigênio era escasso, pouco abaixo do cume, e pela primeira vez em uma semana ininterrupta sentiu vontade se sentar. E foi o que fez, sobre uma grande rocha molhada de gelo derretido. Só então percebeu que, a essa altura, tudo que havia a sua volta eram espessas nuvens. Após dias olhando pedras e mãos e neve e pés, o horizonte lhe foi roubado deixando em seu lugar um grande nada opaco. Onde estava a altura e o esforço em meio a isso?
Sentiu os nós dos dedos doerem, o boca seca, o sono acumulado. Devagar desceu da rocha molhada e, tão rápido quando iniciou a subida, começou a descer.
- Subir montanha, que ideia besta!