terça-feira, 29 de setembro de 2009

Tyrannis Isotheos (ou Canto de Exaustão)

A Fila anda vagarosamente, como uma entidade, um organismo vivo, serpenteando por pernas e pernas e pés e caminhos. Já posso sentir o gosto da comida e nem ao menos lembro-me a quanto tempo ingressei junto à espera, talvez algumas horas. O suficiente para não enxergar o final da fila e ainda cedo para não distinguir onde devo chegar. Mas sei que há comida. Nessas épocas todo e qualquer homem arrisca-se a umas colheradas de graça, um pouco de benção ao estomago sem o peso das ferramentas na mão para se fazer valer uma garfada. Todos se arriscam, talvez por isso hajam tantas pernas, e rostos. Rostos de olhos que fitam os calcanhares precedentes, eles são o ritmo, o caminho para atravessar o estômago da Serpente, cruzar o próximo portão e virar onde Ela toma o rumo da direita e some por detrás do muro cinza. Já não sei a quanto tempo estou aqui, talvez alguns minutos, junto a multidão, caminhando para o alistamento. Não, talvez seja uma evacuação, ou uma busca religiosa. Sim, acho que era isso! Uma busca religiosa, uma peregrinação rumo a santificação. Se bem me lembro há uma peste, ou um juízo final, todos desejam beijar a mão do Papa e subir no ônibus divino, mas ainda restam muitas pessoas a minha frente, quiçá tenham mudado de anfitrião e o próprio Cristo tenha descido para entregar o bilhete premiado, isso explicaria todos esses homens e mulheres de olhar triste. Olhos tristes e cansados. A espera sempre degrada o homem, a cada momento um pouco da esperança de chegar ao fim vai sendo roubada, ou a esperança de retroceder, deixar a Fila, seguir para casa. Mas todos apenas andam, serpenteiam. Acho que já se passaram meses, talvez os rumos entre becos escuros e matas densas tenham me tirado a noção de espaço-tempo. Poderia verificar melhor o tempo corrido encarando a mim mesmo mas só enxergo calcanhares, nucas e voltas. E olhos tristes. Todos aceitam as voltas, aceitam a Fila, o mundo precisa de braços, e da carne que há neles. O mundo precisa alimentar a máquina, somos a ração do Estado. Todos aceitamos ir ao matadouro, estou aqui porque acredito na nação, serei dilacerado com prazer e depois retirado dos dentes da linha de montagem com um grande palito de dente de metal. E por isso esperaria o tempo que fosse necessário. Somos gado, um grande rebanho de bois vestidos e de dentes escovados, temos o olhar triste do bovino mas não a força que há nele, mas somos muitos, somos uma nação. E estamos aqui há um tempo indeterminado. Caminho. Devo estar chegando em Sua garganta, logo serei regurgitado envolto em pelos e ossos. Não sei o que me espera mas ouço o ronco das engrenagens. Tenho medo, mas sigo a Fila. Não sou nada além de calcanhares que seguem e são seguidos.

2 comentários:

Juliana Cominatto disse...

Texto macabro, menino.
Gostei bastante, você está escrevendo cada vez melhor.
Adorei as últimas linhas, a parte do matadouro, as comparações.
Ótima escolha de palavras.

;*

Paulo Chagas Dalcheco disse...

eu li, eu li... eu falei que iria ler: li!!! E gostei, olha que eu gostei mesmo... hehehehehe... Falows mlk!!!