segunda-feira, 10 de agosto de 2009

9ª Sinfonia - IV. Presto - Allegro assai

Já fazem algumas semanas que a reforma no quarto em frente continua ininterruptamente. Logo cedo, por volta das 6:30 os primeiros ruídos começam a soar, primeiramente fraco até seu compositor animar-se com tal feito e arriscar um bolero com marretas e lixas.
Já fazem algumas semanas e sempre inicia-se por volta das 6:30, horário em que nos encontramos dormindo/acordados, tão sujeitos a interferências, a projeções exteriores. Estado de sono Beta como eu poderia chama-lo para criar uma falsa noção de embasamento científico. Marretas, pedregulhos, raspagens, isqueiro, tosse, marretas. E o que antes era um simples sonho erótico torna-se um ensaio de destruição neurológica.
Todos os cenários de guerras juntos formando um resumo teatral em prol da atrocidade humana e seus frutos colhidos sobre um insone moribundo e sua cama. Mil e uma balas ao repique do despertador. O pigarro de um gigante, talvez os dentes de Deus Ex Machina. Sim, Deus Ex Machina partindo rodovias pela fome, escolhendo o destino de cada homem por intermédio de seu impulso irracional. Vestindo a máscara de Crono, pedra por pedra, vida por vida. O valor desprezado a cada deglutição, cortando a tela da profecia de seus filhos.
Vejo a luta pelo ópio, o sinal de despejo, a tesoura gigante a podar nuvens. Toda uma geração a festejar sobre ossos infantis. Concreto de dentes e fluídos. Fetos em doses de martíni, dançando aos rodopios no giro do dedo que há de prova-lo.
Encaro meu próprio testamento sagrado. Sorrio aos maias, danço entre as estátuas da ilha de páscoa, abraço cada civilização deteriorada. Ouroboros cobre o equador e sua saliva, quente, cai como chuva de verão.
Eu poderia escrever um épico, poderia ter um machado e a sede da justiça, poderia enterrar toda minha sensibilidade em um qualquer lugar esquecido. Poderia mudar de quarto, mudar de casa, tomar opiáceos e enterrar a consciência sob o travesseiro. Mas todo o dia as 6:30 a sinfonia começa e a cada dia decoro uma nova nota.

2 comentários:

Juliana Cominatto disse...

Belo texto.
Um começo simples que viaja horrores lá pelo meio e depois volta a ser simples outra vez. Gostei.

E entendo perfeitamente a parte das marretas, das lixas e das tosses.

Ana Lins disse...

Potaquelamierda! Alguém escreveu minhas manhãs. Só que aqui começa umas 7h30. Keep on writing. :)