domingo, 31 de julho de 2011

O cemitério de elefantes

Então passei a observar seus olhos e não ouvi mais suas palavras. Eram olhos frágeis. Ao contrário do tom de sua fala seus olhos eram frágeis. Sempre admirei os médicos, é preciso muita coragem para se mostrar sempre digno de confiança, tanto num simples diagnóstico quanto em uma notícia grave. Frio, direto. Nunca conseguiria construir tal normalidade de gestos como eles fazem. Levo os olhos à janela do consultório, o dia está bonito. Conheci, durante a vida, pessoas que preferiam dias nublados e frios, mas sempre fui do tipo que prefere os dias quentes. Os dias quentes de céu limpo. “Ricardo? O senhor está bem? Precisa de algo?” Volto minha atenção ao médico, mas não digo nada. Apenas sacudo a cabeça num sinal positivo e volto a olhar a janela. Gostaria de sair daqui, gostaria de sair agora. Ouço o homem levantar e depois sua mão pousa em meu ombro em um sinal de pesares. Não respondo.

...

Sento-me no banco do fundo. Não é horário de pico. 14:43. O ônibus trafega com poucas pessoas em seu interior. Respiro fundo, cheiro de suor e óleo de motor. Apesar de tudo gosto de caminhar pela cidade durante as tardes, o mundo é mais gentil. Durante a tarde as pessoas se dão licença, cumprimentam-se. Esquecem onde vivem, esquecem quem são. Eu não consigo, hoje, esquecer-me de quem sou. Sentei no último banco do ônibus, pois esse sempre foi meu lugar favorito. Tenho pavor de pessoas olhando minha nuca, pavor irracional. Daqui do fundo consigo seguir o ritmo do veículo, consigo sentir o ritmo das pessoas. Lá fora o sol castiga a brita das construções. Sorrio ao lembrar que, quando criança, o costumo em andar descalço era tão grande que podia andar de pés descalços no sol por horas a fio sem sentir qualquer desconforto. O carro ao lado buzina, no susto solto um disparo de tosse. Só um, como um tiro perdido.

...

Durante a noite o ar fica mais difícil de inspirar. Sento-me à beira do colchão. A tosse seca volta e sinto o canto do peito doer. É difícil pensar em dormir, na verdade é difícil fechar os olhos. Nunca havia tido qualquer receio do escuro, até gostava dele. Lembro-me das palavras do médico, só das primeiras. As palavras duras e os olhos complacentes. Tosse. O quarto estaria totalmente escuro não fossem os feixes de luz amarelos, vindo das ruas, que estampam os pés da cama. Não lembrava desse cômodo ser tão grande. Tateio o criado-mudo em busca de um cigarro. Costumava ter um gato, costumava até o pequeno sumir - tateio - dizem que gatos morrem longe de casa. Talvez seja por esta estranha sensação de auto piedade presente nos lugares conhecidos. Essa negação do inevitável. Bom, concordo com os gatos, não se pode morrer nos braços de uma mãe. Imbecil, não fumo há meses.

...

Peço para o motorista parar no próximo trevo onde a estrada se bifurca. Ele me olha de forma estranha, pode ter sido a primeira vez que alguém para nesse lugar. Me encara, mas para. Agradeço, faço questão de agradecer e desejar uma boa jornada de trabalho. São 10:00 da manhã, imagino. Ou algo próximo disso. Um dia bonito, como o último, poucas nuvens no céu que, neste descampado, fazem enormes sombras flutuarem sobre a plantação de cana à beira da estrada. O difícil de caminhar em um lugar como esse é que não há um ponto específico para se seguir. Escolho um dos caminhos entre os altos colmos e sigo. Enquanto entro mais fundo na plantação ouço mais um ônibus cruzar a estrada, seguido de dois ou três carros. Sorrio. “Arrivée de toujours, qui t’en iras partout.” li isso em algum lugar. O sol começa a castigar o topo da minha cabeça e o suor escorre pelo meu rosto. Dor no canto do peito e tosse, durou a noite toda, claro que não por avanço dos sintomas, mas sim por pura auto sugestão. Não quero controlar nada, não quero controlar o caminho nem o ritmo da minha respiração. Sigo. Uma das grandes sombras flutuantes me alcança e isso ameniza muito a caminhada. Mais um tiro de tosse e, agora, os sons da estrada não passam de ecos sem direção definida, não muito diferente de trovões.

...

Não sei quanto caminhei, o sol parecia estar a pino quando o amontoado de cana-de-açucar ficou para trás e atravessei a cerca de arame farpada. A tosse vem mais forte, acho que sou eu que a forço. Acho que sou eu quem quer senti-la, quero seu gosto. Sinto um cheiro férreo. O caminho de terra batida termina num desfiladeiro de terra e pedras de onde tenho uma boa visão do horizonte. O vento quente, o cheiro férreo.
Lá embaixo, uma pequena casa destelhada protagoniza o meio da paisagem verde. As paredes manchadas insinuam seu propósito. Enquanto caminho em sua direção o cheiro de ferro aumenta e torna-se nauseante. As manchas não estão só nas paredes, estão pelo chão de terra batida, pela grama e pelo ferro fundido da marreta abandonada ao lado da porta. Um cão magro come os restos podres de uma carcaça bovina. Come e rosna quando me aproximo. Paro e o observo mastigar a carne acinzentada. A tosse volta e, desta vez, é ele que me olha. Tiro os sapatos e sinto a terra quente queimar a sola dos meus pés. O ar é quente e o céu continua azul. Sempre fui do tipo que gostava dos dias assim.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Cenotáfio

Ela observa o rosto magro e salpicado de suor frio. Seus tremores haviam passado e agora só restava o corpo cansado, de respiração profunda. O sono como a fuga da dor.
Ela o observa. Havia passado a noite toda ao seu lado. Panos na testa, cobertores, água. Nunca quis ser médica, muito menos enfermeira, moribundos a irritavam, mas nesse caso era diferente.
Foram seis anos de um relacionamento medíocre dentro do esperado, e fabuloso dentro das possibilidades. Dessa forma, pela união matrimonial e aliciados pelo pensamento cristão, esses pequenos sacrifícios se faziam necessários. Foi uma noite comprida, mas finalmente os arrepios cessaram, assim como os gemidos e as alucinações febris.
Passa a mão, devagar, por seus cabelos ensopados. Rosto frio e calmo, talvez bem mais calmo do que deveria ser, talvez uma cura súbita, Não fazia diferença, nunca quis, mesmo, ser médica. Pouco lhe importava técnicas de reanimação, muito menos o conhecimento cogente para empregar diagnósticos. Este era seu marido, e ela havia feito o possível.
Lembrou-se de uma tarde em que o homem, que agora morria em sua frente, disse que a vida era perspectiva. Nunca foi um evento singular, mas uma representação instituída por aqueles inseridos nela.
“ Só somos vivos, na plenitude esperada, quando por meio de condições externas nos lembrados disso. Não é possível sentir-se vivo enquanto confortável no sofá. Medo, dor, tristeza... Isso realça nossa fragilidade e nos faz relembrar da vida. No mais, somos só efeito.”
Sofia o observa. Havia passado a noite toda ao lado de um homem vivo, mas nesse momento, o peito que doía mais era o dela. Sentiu sua própria fragilidade. Levantou-se e foi à sala onde pode, finalmente, deitar-se no sofá e sentir seu corpo pesar de sono. Estava viva e devia deixar seu morto em paz.