"Já havia assistido a este vídeo tantas vezes que se fizera possível saber todos os detalhes do que se passaria nele, e qual era, exatamente, a ordem cronológica das ações. Apesar do audio estar comprometido pelas limitações tecnológicas de meu celular (mescladas à dificuldade da filmagem disfarçada), foram tantas as repetições que todo o dialogo era muito claro, para mim.
Antes de passar a assistir repetidas vezes ao vídeo em minha casa, havia visto a peça duas vezes ao vivo, a primeira por acaso e a segunda para o exato registro do espetáculo. Era uma representação de Otelo. Nenhuma companhia famosa, na verdade paguei bem pouco para assisti-la, e não fui à arena com muitas expectativas. A verdade é que minha falta de fé na encenação e montagem da peça se provou real, não foi nada espetacular. Na verdade era mediocre, talvez muito abaixo disso, com exceção de Desdêmona.
Ao vê-la pisar no palco senti certo palpitar. Não que fosse uma mulher incrivelmente bonita ou de sexualidade exacerbada. Cabelos escuros e compridos, presos num rabo de cavalo (que julgo que fora feito com base no que deveria ser um penteado ‘de época’), estatura mediana, corpo magro (mas não desprovido de curvas). Mãos pequenas. Fazia força para interagir com os outros atores e, por mais falta de talento que tivesse para o que se propunha a fazer (ou seja, atuar), sua presença no palco e suas falas agiam de forma hipnotizante para mim. O enredo seguia e meu fascinio aumentava. Me preocupava o ciúmes de Otelo, me penalizava as intrigas de Iago, me amedrontava o punhal do mouro de Veneza.
Então, a cena final! O suor brotava em minha testa, o corpo queimava com um calor misto de medo e agonia, sabia como iria terminar. Sabia e sofria por isso.
“ Ninguém; eu mesma. Adeus! Faça que sempre de mim se lembre meu querido esposo.”
O corpo da garota caido ao chão. Nas maçãs dos rostos ainda escorriam as lágrimas. Compartilhei as lágrimas. Fiquei sentado em minha poltrona até todo o público (e elenco) deixar o local, só então, após retomar o folego, pude caminhar para a rua. Sentia êxtase.
No dia seguinte foi novamente à apresentação, foi quando fiz o video.
Fazem dois meses que o video foi gravado e, desde então, o assisto todas as noites. Ainda sinto paixão. Ainda amo aquelas lágrimas. “Ninguem; eu mesma...” Mas a distância faz o desejo clamar por mais. “Faça que sempre de mim se lembre....” Minhas mãos não tremem como antes. Os soluços saem sempre no mesmo entervalo de fala. Não, preciso de mais! Preciso ve-la novamente. Sinto algo se apagando em mim e não quero que isso aconteça, não agora!
Theatro Municipal. Theatro São Paulo. Roosvelt. Centros Culturais. Teatros de Arena. Procuro em todos os locais possíveis pela companhia da qual participava minha jovem Desdêmona. Maurício me disse para deixar disso, que ao invés de utilizar todo esse empenho para encontra-la, devia procurar alguma forma de tratamento, pois isso que sinto beira a insanidade. Não me importo com a insanidade, dela todos devem ter uma certa dose. Por que chorar por uma vitória em um campeonato esportivo e não por um êxtase espiritual? Creio que tenha sido algo espiritual. Nunca fui à igreja, não sei como funciona, mas pelo pouco que pude absorver disso durante minha vida, tudo me faz crer que possa ser semelhante. Ouvi as trombetas que se estendem pelo portão do paraíso. A mão que apertava o pescoço da garota era movida pela vontade divina inserida no mouro. Eu vi. Eu senti. Porém, não é mais pela visão de minha pequena que os tremores vêm, é por sua ausência. Pela ausência da paixão, do êxtase. Apesar de tudo isso Maurício me olha com olhos analíticos e desconversa, e se venço no assunto ele me ataca.
“Já disse que está doente.”
Devo assumir que algumas vezes consigo pensar com mais clareza e percebo uma selvageria desmedida em minhas vontades. Não me vejo diferente de um viciado em cocaína, um alcoólatra ou qualquer cidadão preso em uma necessidade crescente de busca por uma quantidade maior de seu objeto de vício. Já faz um tempo considerável que minha produtividade no trabalho despencou de maneira gritante, perdi muito de minha vida social. Na verdade deixei de sair com antigos amigos para estar em casa me “drogando” com o vídeo (ou simplesmente com a lembrança, que a cada dia cria uma coloração mais opaca em minha memória) e quando não fico em casa percebo que a alteração de personalidade que sofri por conta destes últimos acontecimentos afastaram as pessoas de mim. Quem é que se sente a vontade ao lado de um viciado lunático que beira a sociopatia? E é assim que me enxergo nestes momentos de clareza, como um louco. Um doente. Sento-me no sofá e tento tomar uma cerveja, fumar um cigarro. Encontrar novamente os velhos e prazerosos hábitos, mas o tempo traz a abstinência, começo a pensar na garota e, assim como a ânsia do vício havia ido embora, ela volta. Apago o cigarro, tomo o resto da cerveja e saio de casa. Procurarei Desdêmona só desta vez, assim como tantas últimas vezes. A clareza se foi.
Passei a tarde toda ouvindo Vivaldi. É um dos poucos músicos clássicos que conheço então acho que devo, por respeito, ouvi-lo sempre que possível. Me acalma, apesar de não conseguir compreender, em sua totalidade, como funciona a música clássica. Percebo apenas os loopings. Da dádiva ao terror. Só. Mas hoje me mantive dentro da dádiva. Desdêmona se chama Michelle. Conheci-a em uma das minhas incessantes buscas. Já fazem algumas semanas. Me disse que já não interpreta mais, arranjou um bom trabalho como auxiliar admisnistrativa de uma empresa de seguros de um tio, o teatro era apenas uma distração, uma forma de extravasar e vivenciar um pouco a arte. “Tenho muito de atriz dentro de mim, mas não tenho mais muito tempo para isso”, ela disse, “apesar de todos os elogios que recebi. Já te contei que fui chamada para um teste em uma mini-série de tv? Fui uma das 5 finalistas. Aposto que a escolhida foi por indicação pessoal”. Não fiquei feliz em saber do fim de sua carreira, mas não pude ignorar o fato de ser ela o objeto de meu prazer durante tanto tempo e tive de continuar a vê-la.
Passei o dia ouvindo Vivaldi, e no almoço comi um talharim na manteiga. São 4 horas agora, ainda faltam 3 horas até encontra-la. Resolvo já começar a me arrumar. Creio que hoje será uma boa noite, talvez consiga chegar a algum lugar, afinal estamos nos dendo bem. Procuro uma roupa no armário, algo que seja apropriado. Suo frio e já não sei identificar o motivo de meus tremores.
Sento-me no tapete com as costas apoiadas no sofá. Ela dança de meias pela sala, na mão um copo de vinho.
“O que achou da comida?” Digo. Não a chamo de Michelle, não condiz com sua feição. “Ótima! Foi uma noite muito legal! E.. e eu estou tão bêbada!”
Sorri. Também estou bêbado. Junto com a comida foram duas garrafas de vinho, e mais duas desde que chegamos à sua casa. Seu pequeno corpo continua dançando em minha frente enquanto derrama pequenos pingos de vinho sobre o tapete bege, manchando-o.
“Por que parou de atuar?”
Tomo todo o resto da bebida que tinha em minha mão, ela responde sem sessar os passos.
“Já te disse, porque eu não tinha tempo, alias...”
Não aguento.
“Devia ter continuado...”
“Também me achava uma otima atriz!?”
“Acho que deveria recomeçar”
Ela sorri fazendo uma careta, aproxima-se e senta de frente em meu colo.
“Não podemos falar de outra coisa?”
“Ainda sabe as falas de Otelo?”
“Não, acho que não lembro muito bem....”
“Claro que sabe, Desdêmona! Sabe!”
Ela se assusta dando um pequeno pulo em meu colo, depois diz com voz seca.
“Me chamo Michelle!”
“Interpreta! Pela última vez, só para mim!”
“Não!” ela se levanta “Chega, eu não vou fazer isso, não quero falar merda nenhuma seu lunático do caralho!”
Me levanto, também, e sinto que estou gritando. Ela dá alguns passos para trás, cambaleante, derrubando a taça de vinho, mas logo eu a alcanço fazendo os dois corpos cairem no chão. A queda é silenciada pelo tapete felpudo, assim como sua voz pelas minhas mãos que apertam seu pescoço.
“Fale! Vai, eu sei que você sabe! Fale!”
As lágrimas começam a escorrer por seus olhos mas o grito é interrompido pelo peso dos meus punhos. Ela arranha meus braços. Não sinto. Continuo gritando.
“Sai, prostituta infame! Vais chorá-lo na minha frente?”
Sinto o terror em seus olhos e sua boca começa a se mover. Afrouxo os dedos e posso ouvi-la, quase como em um suspiro.
“O meu senhor! Bani-me de vossa vista, mas deixai-me viva.”
Meu coração acelera. Sinto como se todos os poros de meu corpo se abrissem e absorvessem o mundo a minha volta. As trombetas soam. As palavras de Desdêmona soam. Minhas mãos são guiadas pela vontade divina. Choro. Minhas lágrimas caem sobre seu peito, mas não deixo de tomar, para mim, as falas de Otelo. A cada resposta sinto minha alma estremecer. Fecho os olhos. Ela diz, baixo e sufocada.
“Ninguém; eu mesma. Adeus! Faça que sempre de mim se lembre meu querido esposo.”
Suas últimas palavras são mais baixas, mais sofridas, e então paro de ouvi-la. Sinto dores nas mãos e as abro, caindo de costa no chão. Dádiva. Sinto o tremor pelo meu corpo. Sinto paixão, amor. Me sinto completo. Nunca ouve falas tão bonitas. Nunca será tão perfeito, tão verdadeiro. Permaneço assim, caido, por alguns minutos, até o efeito atordoante de sua morte ir se apagando conforme o sangue em minhas veias volta ao seu ritmo normal. Sorrio, com apenas um arrependimento, devia ter gravado isso."