sábado, 28 de novembro de 2009

Como diria um velho amigo...

Hoje, pela manhã, o café me pareceu mais amargo do que de costume, mesmo após colheradas generosas de açúcar ele ainda se manteve amargo. Às vezes o sono se desvencilha de suas pálpebras em meio às quatro da madrugada e foge por uma fresta fina da janela, seguindo a rotação da Terra, seguindo a noite, para se permanecer sono. Delirar em noites orientais. Me pareceu algo assim, talvez bem menos lírico, diria até mais irritante. Acordei.

Nunca fui um grande apreciador das manhãs. Elas podem ser agradáveis, frescas ou diminutas em raios UV, mas são por demais silenciosas, um silencio peculiar, não como o das noites que em seus sussurros vão apenas rememorando lembranças recentes, as manhãs se aquietam frente as milhares de probabilidades por vir. Elas sentem medo de sí, e isso me apavora.

Não sei exatamente o que me fez acordar tão cedo. Talvez um sonho mal sonhado, um ronco arranhado ou um galo, vizinho de minha infância, que insistiu cantar em minhas veias. Cruzei meia dúzia de pernas matutinas que corriam ao banho, ao fogão, ao carro, à cama. A pressa lhe tira a atenção, ninguém quer ter uma manhã de atenção.

Fiz meu café, 4 colheres de açúcar. Amargo.

Lembro de um amigo que costumava dizer que homens de verdade não tomam o café adocicado. “Homens o tomam puro, amargo, revigorante. Só assim se acorda totalmente”. Estranhamente esse mesmo amigo não era capaz de levantar-se antes das 10:00.

Por fim, sentei-me numa velha cadeira de plástico e assisti ao espichar da vida que se ergue com um arrepio. Vagarosamente despejei o café negro sobre a terra de um vaso de flores murchas e fitei meus próprios sapatos. Por hoje não desejava despertar por completo.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Aconchego

Quando me deitei
à beira mar
deixei com que a onda
quebrasse em linhas
sobre meu travesseiro

E o por-do-sol
respingou,
sonolento,
sobre meu rosto
que dormia
em paz.

sábado, 21 de novembro de 2009

Honra vil

eu tenho que começar
de alguma maneira
eu tenho que recomeçar
de novo

duas cervejas pagas
e uma cachaça pro tiozinho lá
ê laiá

na noite que revem
e vem trazer
o esquecido na solidão
que pede um trago

mais um
por favor

e dois reais
botam pra dormir
como um anjo
beijando a guia

diria até meu amor
mas está meio caro

volte na sexta, por favor
por favor, por favor
e traga um pedaço de papel
envolto em couro

saque além do bigode
e da barba
de um pra lá e um pra cá

que é da vontade que se faz o ouro
e é assim que se faz

Magna

A terra é, predominantemente, cinza e vermelha. Antes do verde, do azul ou negro, eram apenas o cinza e o vermelho, como osso e sangue. Desse bi-colorismo surgiu a saliva das rochas em forma de oceano, e da saliva o resto mastigado que, brotando no canto úmido do cenário, fez-se carne, de grandes mamas a jorrar leite coalho que, por sua vez, fez do vermelho os vermes.
Há quem diga que são modelos de barro ou macacos com talheres, mas a verdade é que tudo provem de um onisciente traço pré-existente de nada.
Certa vez me disseram que Marte em determinada posição abria um leque de possibilidades cegas de tragédias eminentes. “ Quando estive doente só não me preocupei porque os números prometiam recuperação”. E assim como Marte, a veia safena migrou ao tórax para abrir novas possibilidades de dor e cicatrização demorada. Os planetas não cauterizaram aquele senhor.
Hoje, pela tarde, o céu voltou a ser apenas cinza e jorraram grandes poças de saliva sobre os telhados. Fiz meu papel de carne.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Corpo de Julho

Mas se não fosse a espreita
quase sinestésica do lembrar
que me embala a dirigir
manhãs shakespeareanas de
elenco alheio.
Se não fossem seus pés
pequenos e marcados
que já antes marcaram
o torpor cotidiano
e ainda hoje
forçam a disritmia
quando voltam-se, novamente,
a mim.
Se não fosse o olhar
daquela pinta
a direção
de suas mãos
a impressão
por seus olhos
E se não fosse ela
seria eu
só frio e fome

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Novembro

São os carros
e portões
e garagens
e jantas
(ou o cheiro delas),
no chamar,
fim do futebol,
de traves de tijolos,
no reavistar.
No círculo vermelho
que surfa em prédios
que se anuncia a noite,
fornalha de verão.
E o suor,
salgado, de todo o dia
dorme úmido no lençól.